segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O país dos artesãos

Desde que chegamos aqui, eu e a Juliane temos notado algo curioso no dia a dia francês. Esse é, sem dúvida, um país de artesãos. Como assim? Já comentamos isso em outros momentos, mas o mais comum aqui é encontrar lugares que se orgulham de produzir o melhor presunto, o melhor baguete, o melhor croissant e por aí vai. Mas o que não comentamos é que nesses lugares, antes de afirmar que fazem a melhor gororoba, eles reivindicam o título de artesãos. Ou seja, não se trata de um padeiro, mas sim de alguém disposto a viver pela sua arte: a arte do baguete.

Agradecemos, é claro, pelo fato de que o pós-estruturalismo das artes não chegou nos talentos dos padeiros franceses – sabe-se lá o que poderia vir daí. Mas é estranho pensar que eles são capazes de se reivindicar como artesãos ainda hoje.

Digo isso porque a história dos operários franceses, da Revolução Industrial aqui, tem um toque um tanto quanto inusitado. Aqui havia um amplo mercado de trabalho, lá pelo século XVIII, focado nos artesãos. O artesão era aquele encarregado de um ofício específico (digamos, por exemplo, preparar pão). Para isso ele contava com inúmeros ajudantes e lhes pagava com comida, lugar para morar e vestir – não muito diferente da escravidão. Mas havia algo mais: o artesão passava adiante o segredo de sua arte (fazer pão) para os seus ajudantes, que na verdade nada mais eram do que aprendizes. Assim, um passava para o outro o segredo do ofício. No capitalismo moderno, momento em que entra o trabalho assalariado na jogada, esse artesão especializado percorreu dois caminhos: ou se especializou tanto que passou a gerenciar outros trabalhadores, ou simplesmente seu trabalho ficou obsoleto e ele passou a ser um peão na linha de produção.

Contudo, alguns ofícios na França mantém ainda a ideia de chamar o trabalhador assalariado de “artesão”. Provavelmente isso lhes garante prestígio e um inusitado exemplo disso é que aqui perto da nossa rua tem a Associação dos Artesãos do Táxi. A gente chamaria isso de Sindicato dos Taxistas, mas tem uma coisa maluca aqui: afirmar que o seu trabalho artesanal é muuuuuito superior ao trabalho feito por “qualquer um”. É por isso que os doces nas pâtisseries são lindíssimos, é por isso que os baguetes ganham prêmios e os supermercados têm sommeliers para nos ajudar a escolher o vinho nosso de cada dia.



A valorização do artesão aqui chega às raias do surreal quando a gente adentra nos preços. Uma ida na loja de congelados mais próximos e encontramos, por exemplo, um filé de porco congelado por 17 euros o quilo (sim, um assalto). Se formos do outro lado da rua, no supermercado, eles oferecem esse mesmo filé já cozido num molho pronto por...17 euros o quilo. Comprar uma pizza congelada? Cerca de 3 euros. Comprar os ingredientes para fazer a pizza em casa? Quase 9 euros. A mesma coisa notamos com carnes também. Comprar a carne congelada sai mais barato que comprar carne fresca – o que não é exatamente uma surpresa. Mas comprar o prato de carne congelado sai mais barato que comprar a carne para cozinhar em casa. Nas feiras de produtos, por exemplo, ao contrário do Brasil, eles são bem mais caros que nos supermercados. Em todos os lugares, a mesma lógica: o trabalho manual (do artesão) tem mais valor que o trabalho industrializado (o que se reflete no seu preço). Assim, a ideia de economizar aqui cozinhando em casa nem sempre se verifica dependendo do prato que você faz.

Comentei com a Juliane que acho que isso tem um pouco a ver com estarmos numa sociedade já bastante industrializada, onde esse processo de industrialização de alimentos tá anos luz à frente do Brasil. Aqui se encontram alimentos processados de todas as formas, tipos, tamanhos e origens (escargot congelado por 3,95 na loja de congelados mais próxima). No mês passado chegamos a comprar sachês de purê de batata prontos. Os chocolates industrializados são ótimos e baratos... Porém, quando se chega na parte do trabalho manual e delicado, se reivindica o valor do artesão e de seus segredos. Como na época das corporações de ofício, essa figura dedica-se integralmente a fazer do trabalho dela uma obra de arte. E para consumir essa arte, o preço pode ser (e na maioria das vezes é) maior. No supermercado, a baguete pronta custa 0,40 centavos. Na boulangerie artesanal, 0,95 centavos.

No último sábado fomos num festival que ocorreu no parque André Citroën, a algumas quadras daqui de casa. Lá vimos que um dos grupos organizadores era uma associação de artesãos internacional que combatia a presença da agro-industria e dos intermediários nos processos de produção. Era bem interessante e eles até tinham uns sucos brasileiros (cheios de goiaba, mas ok). Mas novamente a ideia do artesão falava mais forte: eles não são trabalhadores. Eles fazem arte. E querem ter isso reconhecido na França e no mundo. Esse tipo de distinção deve dar uma minada na solidariedade de classes deles...


Assim, a gente vai vendo, pouco a pouco, que as noções francesas sobre o trabalho são bastante diferentes das nossas. Entre artesãos/artistas e operários, estamos numa sociedade bem mais industrializada e que nos oferece, no frigir dos ovos, um passeio por uma sociedade de consumo diferente da nossa. Que valoriza o trabalho manual em detrimento do trabalho industrial. E que reconhece nisso uma tradição de tempos mais antigos do que o nosso.    

Nenhum comentário:

Postar um comentário