terça-feira, 14 de outubro de 2014

A miséria parisiense

Esse é só um relato de quem anda pelas ruas de Paris. Não é tratado sociológico, nem mesmo histórico - que faz muito mais meu estilo. É apenas uma percepção sobre um pouquinho da miséria que a gente encontra em Paris. Tem um quê de desabafo também, mas vocês vão entender quando eu chegar no final...

Em mais de um texto já falamos disso: aqui tem morador de rua, sim. Há miseráveis na Paris do século XXI, tanto quanto havia no século XIX. As noções de miséria podem ter mudado, mas ela ainda segue assombrando as ruas. Já ouvi brasileiros dizendo que essas pessoas, em Paris, estão ali por opção. Dificilmente. O conjunto de moradores de rua que encontramos em Paris parece um tanto quanto heterogêneo e é diferente do que estamos acostumados nas cidades brasileiras. Mas ninguém queria estar ali. Para entender isso, é preciso pensar um pouquinho sobre os tipos de miséria que temos lá e cá.

O primeiro choque de realidade se refere a questão étnica. No Brasil, a imensa maioria dos moradores de rua são negros. O nosso passado escravista tende a ser um dos principais suportes para entender isso. As consequências de séculos de escravidão, da institucionalização do racismo e da construção de sua invisibilidade fizeram com que a miséria no Brasil tivesse também uma "cor". Na França, a situação de abandono está refletida em diferentes tipos sociais. Entre moradores de rua, que pedem dinheiro nas portas de metrô e nas calçadas, estão tanto árabes, brancos e negros. Difícil dizer qual grupo se destaca mais. Em termos religiosos, diria que são as mulheres árabes. Envoltas em véus, elas sentam-se nas escadarias dos metrôs e seguram cartazes com uma ou outra frase escrita. Geralmente algo forte do tipo "J'ai faime", ou "tenho fome". Difícil saber se são imigrantes ou nativos. Um outro senhor, há alguns metros de onde moramos, fica perto de um escritório de assistência social e pede um emprego e/ou tickets de metrô (o desemprego francês chega a mais de 10% nesse trimestre). Na padaria perto de casa fica uma moça com uns 20, 25 anos no máximo, com uma roupa grossa de inverno (às vezes de salto alto) e sentada na calçada, com um copinho onde as pessoas depositam suas moedas.

Em termos de faixa etária, aparentemente aqui é diferente do Brasil. Ou era. Em Porto Alegre, assim como em outras capitais brasileiras, é ainda bastante comum ter crianças pedindo dinheiro. A expansão da escola pública - consequência de programas sociais como o Bolsa Família - ainda não resolveu o problema da miséria urbana entre jovens, adolescentes e crianças. Na França, isso tem se apresentado como uma novidade dickensiana, que reproduz o século XIX em pleno século XXI. Tanto que um dos representantes de Paris, prefeito do 6º distrito, declarou ontem que a mendicância infantil era um problema "sanitário" - referindo-se possivelmente não só à saúde pública, mas também buscando um vocabulário do século XIX para se referir a pobreza. Ficou tão chato que estampou uma das páginas do Direct Matin de hoje.



Quanto aos ambientes, não há tanta diferença em relação a mendicância, mas sim às atitudes. Dentro dos trens da malha metroviária de Paris, é difícil fazer um deslocamento sem que alguém esteja lhe pedindo dinheiro. Em Porto Alegre, os ônibus não deixam mais o pessoal mendigar dentro do coletivo. É cada vez mais raro isso acontecer. No trensurb, já vi gente chamando a segurança do trem para tirar uma pedinte...as pessoas fazem de tudo para não ver a mendicância no Brasil, como se fosse uma lembrança pavorosa da desigualdade social do país. Na França isso não ocorre. Nos metrôs os artistas tocam, cantam, dançam, fazem teatros de marionete (aham! juro!)...e tentam arrecadar alguns cobres. Outros, sem tanto talento, contam histórias tristes. "Tenho fome", "Minha mãe está desempregada", "Preciso comprar remédios". As formas de contar sua própria miséria não são tão diferentes assim entre Porto Alegre e Paris - mas a indiferença parisiense perante os pedintes é muito maior do que a dos porto-alegrenses. Mas se os nativos não são simpáticos, os turistas sempre podem contribuir com algumas moedas (lembrando que na Europa existem moedas de até 2 euros).

O argumento mais xenófobo atribui essa miséria aos imigrantes - dizendo que eles estão destruindo a França. É impressionante como ouvimos esse argumento até mesmo de brasileiros. O argumento mais social fala da crise, lembrando que a França enfrenta hoje um déficit público assombroso, onde todo o PIB não dá conta de pagar a dívida do Estado. A esquerda francesa mais radical não concorda com a política que emana da Alemanha de controle do déficit público e prefere lembrar que a austeridade manteve grandes fortunas intocadas. E independente desses argumentos, Paris segue com pessoas revirando lixo a procura de comida, gente que dorme nas estações de metrô, que faz suas necessidades na rua... que não tem casa e, portanto, se sente desterrada. Se são estrangeiros, essa sensação se torna mais aguda (não sabem a língua o suficiente para se comunicar). Se são nativos, vieram do interior e querem voltar para casa. A miséria não é seu lar.

Paris é linda, não me entendam mal. É rica e deslumbrante, guardando e preservando traços de seu passado glorioso. Mesmo em crise, mantém-se maravilhosa (e vale lembrar que o turismo é uma das poucas atividades econômicas que segue crescendo na França atual). Mas tem se mostrado também como um lugar onde podemos entender melhor a ideia de que a riqueza não pode ser qualificada sem que a pobreza seja contemplada. Até então, os franceses conseguiam - como tantos outros países - empurrar os pobres para além de suas fronteiras. Nos dizeres de Sartre, o inferno eram os outros (ou "a miséria eram os outros"). Mas agora, a miséria não é apenas a dos outros...é a deles também.

De todas essas visões, algumas coisas me fizeram pensar. Em 2013, eu e a Juliane viajamos para Cuba. A ilha caribenha vive de turismo, como se fosse praticamente a única coisa capaz de tirá-la do atraso econômico decorrente da queda do bloco socialista e do bloqueio econômico americano. Lá vimos mais cachorros de rua do que moradores de rua (o que é um bom sinal). Mas eles existiam. Em Santa Clara conhecemos um rapaz que vivia na rua porque economizava para poder viver com sua namorada que era lá para os lados de Baracoa, na outra ponta de Cuba. Também nessa cidade vimos um senhor bastante esfarrapado que andava de muletas e pedia uns trocados para os turistas. Em Havana havia muitos golpes que tentavam pegar uns trocos da gente oferecendo charutos ilegais e espetáculos suspeitíssimos de música cubana. Mas duas coisas me chamaram atenção: uma vez, em Havana, havia uma criança que me pediu um peso quando andávamos na rua. Minha reação foi dizer "não" e seguir andando. Comentei com a Ju que aquilo tinha sido surreal, porque a criança na verdade era normal. Ela não estava suja, maltrapilha...ela não tinha nada daquilo que identificávamos como "miséria" no Brasil. Parecia quase um insulto, uma piada de mau gosto, ela pedir dinheiro. E como eu estava errado. Por mais que se objetive a miséria, foi aqui na França que vi que a miséria é uma condição subjetiva, uma humilhação a qual uma pessoa se encontra por conta da indignidade de não ter o suficiente para sua sobrevivência. Talvez aquela criança nem pudesse ser considerada miserável - e talvez ela mesmo não se pensasse assim -, mas certamente essa condição não podia ser avaliada só por mim.

A outra situação foi pensar no que resta de solidariedade quando a gente se depara com a miséria, mesmo que seja tão difícil identificar. Nessa mesma viagem para Cuba, fomos jantar num restaurante cujo dono tinha trabalhado no Brasil por muitos anos. Ele adorava receber brasileiros, mas acabamos conversando muito mais com os garçons - que em dado momento chamamos para bater papo com a gente na mesa. Um deles, aproveitando que falava com estrangeiros, extrapolava na franqueza e falava que apesar de tudo, o momento presente era melhor do que a década passada. Os anos 90 e início dos 2000 foram terríveis para a economia e para a sociedade cubana. E o garçom nos lembrou disso contando uma história de que na casa dele, apesar de tudo, nunca faltou comida...mas que sua mãe constantemente oferecia o que comer aos vizinhos que nada tinham - especialmente depois de um furacão que atingira a ilha. Engolimos em seco, sentindo uma angústia e soltamos exclamações meio aturdidas de "que bom, que legal"...e ele só salientou: sim, porque...somos cubanos. Somos todos irmãos e temos que ajudar-nos uns aos outros.

Gosto de pensar que aquela conversa me tocou mais do que muitas e muitas aulas, do que muitas e muitas leituras teóricas. A miséria passou a ser um objeto de estudo mais comum para mim, mas também uma sensação de que é preciso perceber a sutileza da miséria. Ela está em Havana, ela está em Paris, ela está em Porto Alegre... Constatar a existência dela, contudo, não é suficiente (embora em tempos obscuros, falar a verdade se não é revolucionário é meio reformista e já tá valendo). É preciso estudar a miséria e ver ela como a outra face da opulência e da riqueza. Uma não existe sem a outra. Uma é o rastro degradante que a outra deixa para poder existir.

Um comentário:

  1. Não sei Fernando, mas eu acho que a miséria se concentra muito em Paris em função dos turistas e muito do pessoal que está lá recebe ajudas, mas mesmo assim vai mendigar. Meu marido quando esteve desempregado, alugou um quarto em Clichy (pertinho de Paris), a viatnamita dona do apê disse pra ele tomar cuidado com o vizinho ao lado. Depois ele foi descobrir que aqueles aptos que ele estava eram cedidos pelo governo e que o vizinho, assim como outros moradores eram mendicantes, mas tinham lugar para viver assim como recebiam subisídios de reincerção social. Aqui na Alsácia por exemplo, não se vê absolutamente nada de miséria, não há ninguém dormindo nas ruas nem mesmo cães. Também é certo que nao há quase nada de turismo, salvo os alemães que vem em peso no Natal.
    Quando morei aí, o que me chamou mais atenção eram os moradores de rua com notáveis distúrbios mentais, claro que a conjuntura econômica mudou, fazendo a miséria aumentar, porém se estas pessoas procurarem elas recebem ajudas de fato. E não estou falando em esperar meses por isto. Por exemplo, em uma situação de emergência, ainda mais com criança, posso contactar uma assistente social e receber na minha porta umas sacolas com comida no mesmo dia. Mesmo se estiver ilegal. São coisas que a gente vai vendo e sabendo principalmente nestes sites de entre ajudas de brasileiros.
    Beijinhos

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