sábado, 25 de outubro de 2014

Grávida de Luís Carlos Prestes

Desde que chegamos aqui tem me chamado a atenção a quantidade de crianças e de mães jovens pela rua. E não falo de mães/pais com um bebê, ou uma criança já grande, falo de casais com duas, três, quatro crianças, no melhor estilo "escadinha". Algo comum por aqui, inclusive, são os carrinhos duplos (que só lembro de ter visto no Brasil no caso de gêmeos, ou seja, é raro) que levam duas crianças de idades diferentes, mas com pouca diferença.

Primeiro achei que eu podia estar exagerando, que seria uma falsa impressão a quantidade ""assustadora"" de crianças, mas conversando com o Fernando ele concordou. Nossa primeira hipótese foi a educação e a saúde pública de qualidade, assim é muito mais fácil ter um filho. Depois problematizamos que isso poderia ser uma marca do nosso bairro, o 15e, de classe média/média alta, com poucos imigrantes, com alto poder aquisitivo, essas coisas.


Ontem tivemos a oportunidade de conversar com uma imigrante portuguesa que vive aqui há bastante tempo e nos foi bastante esclarecedor. A maioria das reflexões que faço aqui partem então dessa conversa, e de conversas com brasileiros que também moram aqui há muito tempo. Assim, nosso parâmetro é Paris, já que há variações por região (e renda) na ajuda dada pelo governo. Associo o texto de hoje também ao texto de ontem, sobre o "bolsa família" daqui, que não é um, são muitos.

Saúde

O sistema de saúde público, que todos são obrigados a ter, é conhecido por ser de altíssima qualidade e funcionar muito bem. Se você precisar fazer uma consulta você paga ao seu médico algo em torno de 28 euros, dinheiro que será ressarcido pelo governo, diretamente na sua conta, em cerca de 5 dias.  Pelos relatos, o sistema já foi melhor, cobrindo 100% de todos os custos com saúde, hoje ele cobriria uns 80%, o que para nossa experiência já seria um sonho.

Vacina para gripe? Paga pelo Estado. 

Cirurgia de redução de estômago? Paga pelo Estado. Mas o mais interessante é que todas as cirurgias reparadoras (consideradas estéticas no Brasil), são pagas pelo Estado também, já que são entendidas como parte do "pacote" da cirurgia: dessa forma, a cirurgia plástica vai para a conta do Estado. Assim como são entendidas como parte do pacote "acessórios" pós cirúrgicos: em uma cirurgia de retirada de nódulos mamários, por exemplo, você precisa usar um sutiã especial que aqui custa em torno de 80 euros. Pago pelo Estado. 

E sistema de saúde privado, tem? Tem, ele serve para dar conta daquilo que não é abarcado pelo público. Um plano de saúde privado para uma família (pais com mais de 40 anos e criança), sai por uns 170 euros mensais. Entre as vantagens apontadas está o fato de você ficar em um quarto individual (o público é com quarto coletivo). Fiz uma simulação de preços no site da Unimed de São Paulo e um plano para mim e para o Fernando sai em torno de 412,12. Em euros: 131,46. Esse seria o plano mais barato, com abrangência regional, obstetrícia e internação na enfermaria. Agora faça o cálculo mais lógico: o salário mínimo daqui, arredondando, 1400 euros. O salário mínimo daí 230 euros. Que tal te parece a proporção?

Ah! E parece que médico aqui ganha como qualquer trabalhador, e é "gente como a gente" (citação).

Assistência Social

Aqui dona de casa tem direito à assistência social. Trabalhador também. Todo mundo tem. Trabalha-se pouco (a média francesa é de 35 horas semanais). O sistema de seguridade social francês é bem melhor que o INSS nosso-de-cada-dia, ao garantir que todos aqueles com problemas de saúde ganham seu pagamento integral - independente do empregador. Quando falamos que no Brasil é muito difícil de conseguir licença médica, ouvimos que a França garante isso por lei a todo mundo. E de fato, o empregador que não garantir licença médica a um funcionário pode ser duramente processado.

Mesmo quem está aposentado ou por invalidez mantém seus recursos intactos, garantindo entre 80 a 100% do seu salário integral mesmo quando não está trabalhando. Nos anos 90 e 2000 houve muita pressão para que se aliviasse a previdência social francesa, mas o fato é que ela é fortíssima e reforça essa ideia de que ela não é só para "pobre", mas sim para todos. Assim, todo francês é responsável pela manutenção da assistência social.

Educação

É pública, em sua grande maioria, do ensino básico ao ensino superior. Há escolas do básico privadas, geralmente confessionais, mas o que corre "à boca pequena" é que as públicas são melhores (mais ou menos como no Brasil sobre as universidades públicas/privadas).  Já universidades privadas são ainda mais raras e também estão ligadas ao catolicismo.

Fora isso, no que se refere ao ensino básico, os horários da escola são bastante interessantes: das 8:30 às 16h (ou 16:30, não tenho certeza). Dessa forma, você não precisa de uma babá, por exemplo, já que a criança fica o dia na escola. Se você precisar que ela fique um pouco mais, é possível também. Tudo público e laico. Assim, as crianças comem no refeitório da escola, e devem comer tudinho, inclusive a salada, pois há um fiscal para controlar isso. Que tal? Somado a isso, e partindo de um relato, o uso da cantina é pago, mas de acordo com a renda dos pais. De novo para quem não entendeu: o pagamento é proporcional à renda dos pais.

Filhos

Já que estamos falando dos pequenos: aqui a escola começa a partir dos 3 anos, se antes disso você quiser pagar uma babá (1500 euros), o Estado paga metade. O que parece ser muito comum aqui é duas famílias contratarem um babá (geralmente imigrantes) e dividirem ainda mais os gastos (e aumentarem o trabalho dela...)

Uma outra possibilidade é você não querer babás e resolver parar de trabalhar para poder cuidar dos seus filhos até os 3 anos: o Estado pagará para você uma "bolsa" até lá. Fora o fato que você recebe uma ajuda de custo para os filhos que você tem e algo em torno de 900 euros (pode ser mais ou menos dependendo da região e da renda) para poder comprar o enxoval do seu bebê e outros produtos considerados essenciais para a criança - desde que tenham preços acessíveis. O relato que tivemos foi de que o governo francês sempre trabalhou com a ideia de famílias com 3 filhos, e para que isso acontecesse facilitou e incentivou bastante a vida de todos que quisessem ter seus "bacuris e bacurias".

O que isso significa para mim?

Tenho 32 anos e não tenho filhos. As mães que eu vejo na rua, muitas com menos idade do que eu, têm 2, 3, 4 filhos (num verdadeiro exercício de malabarismo).  Quanto eu gastaria, no Brasil, para ter dois filhos? Plano de saúde e educação privada e uma jornada de trabalho extenuante para poder arcar com as despesas. Ou eu poderia usar o sistema público - que sabemos que tem problemas bem sérios. Seria temerário da minha parte depender unicamente do SUS, embora haja ótimos relatos do IPE no RS. Quanto à educação, há boas chances de conseguir escolarizar um filho por meio da escola pública (temos ótimas escolas federais, por exemplo) e se considerarmos o Ensino Superior, as federais botam no chinelo as universidades privadas. Mas a expansão da educação e da saúde privada no Brasil se deu (e ainda se dá) demolindo a qualidade daquilo que é público. E com isso a maioria das pessoas que têm renda suficiente migra para os serviços privados, se sentindo desresponsabilizada pelos serviços públicos, que por sua vez, vão ficando cada vez mais estigmatizados e recebem cada vez menos verbas. É uma bola de neve perigosa - que foi contida nos últimos 12 anos, mas que não deixou de existir.

Em síntese: viver num Estado de bem-estar social bem assentado é um sonho, já que ele garante direitos básicos a todos os seus cidadãos (eu disse TODOS, inclusive aqueles que ainda não têm essa cidadania garantida, como os imigrantes ilegais). O que isso significa na prática? Você tem acesso à saúde, educação, auxílios diversos, que garante que todos tenham condições de vida, pelo menos, dignas. e combate, assim, a desigualdade social. Claro que você só consegue isso com impostos, e com impostos que recaem cada vez mais nas classes altas, o que é muito justo.

Hoje a França vive talvez o seu pior momento, com uma altíssima divida pública e com desemprego bem maior do que o Brasil. Uma das alternativas proposta pela direita é a privatização de muitos desses serviços, o que é rejeitado pela maioria da população (pois essa grande maioria se beneficia do sistema público). A extrema-direita, mais malandra, se recusa a fazer isso, mas vai mais longe. Com um discurso xenófobo ("a culpa é dos imigrantes"), eles se propõem não a desmantelar o Estado de bem-estar social, mas sim tirar os imigrantes dele. Isso encontra eco numa parcela da população (principalmente no Norte, pelo que vimos em alguns adesivos colados no nosso bairro: "na Bretanha, empregue Bretões". Me-do). As esquerdas, por sua vez, falam que o governo pode (e deve) abrir mão do discurso de austeridade e ampliar ainda mais a tributação sobre as grandes fortunas francesas. Isso faz com que haja evasão de ricos, que acabam indo morar na Bélgica, Holanda, Espanha, Inglaterra. Os investimentos também minguam e, consequentemente, acaba aumentando ainda mais o desemprego. Uma solução proposta pela extrema-esquerda seria começar a encampar empresas para garantir que os empregos não diminuíssem.

E ainda dá para ter filhos aqui, mesmo diante desse cenário? Bom, a rigor, continua parecendo mais fácil constituir família aqui do que no Brasil. Enquanto verificamos o declínio econômico francês e suas consequências sociais, na nossa terra natal a gente vê exatamente o contrário. Mas ainda assim o abismo é grande.

O meu primeiro impulso depois de saber do funcionamento das coisas por aqui foi: "vou ter filhos e morar aqui para sempre!". Mas daí passei uma noite perambulando entre bares cheios de franceses bem franceses e me dei conta de uma coisa: vai que meu filho sai blasé também?!

Resumindo: desisti da ideia ;)



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