quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Homenageando a Catalunha - parte II

Continuamos hoje a parte II do texto do Guinter sobre o procés catalão de autonomia. O texto é muito bom e a primeira parte foi ontem, para quem perdeu (é só clicar aqui , calma). Vale para entender até mesmo a nossa dificuldade, enquanto brasileiro do sul para compreender os separatismos sem cair em xenofobias e doidices afins. Um baita texto e que vale salientar: ele e as fotos são obras exclusivas do próprio Guinter: a gente só cedeu o espaço e, é claro, foi uma honra. :)

Começando por uma questão comum a tod@s: a atitude do Estado espanhol em se mostrar totalmente avesso à consulta, algo percebido como antidemocrático, em que pese as garantias de autonomia previstas na sua constituição, tem acirrado em muito as posições. Isto é, acima de tudo, querem poder simplesmente ter a possibilidade de decidir, mesmo que para dizer não à independência. Isso por si só evidenciaria a fragilidade do exercício democrático no Reino da Espanha.

Agora, para além disso, as coisas começam a ficar mais complexas. O primeiro com quem conversei mais detidamente foi um estudante de Educação Social da UdG (Universitat de Girona), no meu segundo dia em Girona. Estavam fazendo uma greve, mantendo por dois dias fechado o campus Barri Vell (que concentra os cursos de Humanas, como não poderia deixar de ser). Perguntei quem de fato defendia a independência. Me disse que havia diferentes grupos políticos, inclusive mais à direita, mas que mais seriamente a esquerda catalã (em suas diferentes tendências). Para Mas e a CiU, segundo ele de centro-direita, era apenas uma forma importante de garantir votos nas próximas eleições (oportunismo eleitoral, a gente também vê por aqui...). Na esquerda, os grupos rupturistas não compõem a campanha pelo referendo, porque defendem que uma independência política não necessariamente traz mudanças sociais. Já ele, outros grupos e partidos (como a Ezquerra Republicana, que tem deputados na Generalitat e que é o atual favorito segundo as pesquisas para a próxima eleição de presidente do órgão), entendem ser importante discutir e promover o referendo, mesmo que aliando-se momentaneamente com grupos de centro e centro-direita, e ainda que ele também entenda a importância de aproximar às questões políticas as pautas sociais (como o crescente  problema de despejos de famílias pobres e de classe média baixa, que perderam suas casas com a crise).


O segundo grupo com o qual conversei eram alguns professores da UdG, incluindo minha orientadora aqui, a professora Rosa Congost. Gentilmente me convidaram para um café, querendo saber mais sobre as eleições brasileiras (especialmente sobre o fenômeno Marina Silva), mas igualmente sobre como eu - apenas um rapaz latino-americano com alguns euros no bolso – via toda esta questão política da Catalunha. Respondi que achava muito interessante, mas que ainda estava aprendendo a respeito. Uma pergunta, no entanto, me chamou a atenção: se na América Latina havia simpatia com a causa catalã pelo fato de supostamente compartilharmos uma “experiência colonial” em comum, quer dizer, como sofrendo também do imperialismo castelhano. Bom, argumentei que, ao menos no Brasil, com exceção de pessoas mais interessadas sobre o tema (ou do público da História), a população em geral desconhece as diferenças internas da Espanha. Então, a Conquista e a exploração coloniais estão associadas ao espanhol genérico, sem considerar as diversas nações dentro da Espanha. Logo, brincaram sobre essa questão de que aqui só existe a Catalunha e mais nada. E a respeito da independência em si, tinham posições mais moderadas, não tendo certeza se seria um bom negócio, embora seguramente que se identificassem como catalães e não como espanhóis. Possivelmente por serem mais velhos, estejam mais desiludidos com toda a questão...

A última conversa que destaco foi com um dos meus companheiros de casa: trinta e poucos anos, engenheiro de recursos renováveis, ativo na militância dentro da sua área, assinante de um jornal produzido em Barcelona bancado por movimentos sociais. Ele me argumentou que, basicamente, o Estado espanhol é um “desastre”, em diferentes sentidos. Apesar de no papel - ou seja, na constituição – serem garantidos às comunidades autônomas espanholas níveis de soberania relativa a diferentes elementos (especialmente de língua, lembrando que não apenas o idioma falado na Catalunha é distinto do castelhano, mas também o galego e o basco, este sim completamente diferente), na prática o Estado espanhol ceifa uma série de direitos. Por exemplo, afirma que deve-se “espanholizar” as crianças catalãs, pois a aprendizagem do catalão prejudicaria seu domínio do castelhano (lembre-se de que os catalães são educados em ambas as línguas). O argumento da Catalunha como uma das últimas “colônias” de Castela também apareceu em sua fala. Por outro lado, os indivíduos que têm ocupados os principais cargos políticos no governo espanhol estão vinculados direta ou indiretamente ao período franquista, sendo filhos ou netos de generais e de outros colaboradores da ditadura (algo que tristemente nos soa familiar...). 

Por último, ressaltou que o argumento fiscal/econômico também importa. (Aliás, talvez o principal argumento abraçado pelas forças mais conservadoras da Catalunha que estão na aliança política pelo referendo). Atualmente, a Catalunha é responsável por cerca de 20% do PIB espanhol, recebendo no entanto bem menos do que isso. Ok, aqui está uma pauta que para nós mais se aproxima de uma visão mais reacionária do separatismo. “Produzimos mais riquezas, mas recebemos muito menos”. O meu companheiro de casa argumentou que isso tem um efeito a médio prazo de quebrar a economia catalã. De fato, não ficou claro para mim, talvez lost in translation, qual sua opinião acerca disso, ou se este é um argumento mais válido para a causa independentista. Contudo, disse que, no caso de uma separação da Catalunha em relação à Espanha, a primeira com certeza absorveria boa parte da dívida espanhola, o que seria benéfico a outras regiões. Resumindo, a questão é complexa, é não se pode reduzir a causa independentista a um único fator. Como qualquer questão histórica.


Bueno, é uma questão difícil de se compreender para um novato como eu. Se posicionar com clareza, ainda mais. O elemento econômico/fiscal, muito ressaltado pelas redes de notícias, ou ao menos pela TVE, principal canal de televisão, soa demasiado familiar, muito próximo ao argumento das elites brasileiras, e especialmente gaúchas e paulistas, sobre como trabalham tanto e são responsáveis pela riqueza produzida no país, mas que são aviltados pelos “pobres” e “vagabundos” concessionários da Bolsa-Família nordestinos. Na Espanha, geograficamente o Norte/Nordeste cultural e econômico seria o sul, a Andaluzia. Por isso, a pulga permanece atrás da minha orelha.

Contudo, também me parece verdadeiro, até o momento, que os principais defensores de uma soberania/independência estão situados mais à esquerda. E também me parece certo que a experiência do regime franquista, que proibia o uso do catalão em espaços públicos, e mesmo em cartas particulares, contribuiu para o reforço de uma identidade catalã como uma identidade política, acima de tudo. Franco, os fascistas espanhóis e a Guerra Civil de 1936-1939 implicaram uma ruptura no processo de mobilização social e política que vivia toda a Espanha naquele momento com a República. O discurso da unidade da nação espanhola, alimentado fortemente pela religião católica e o “espanholismo” (que na verdade era um “castelhanismo” disfarçado) reprimiu violentamente não apenas quaisquer discursos e práticas de contestação social, mas também - algo mui significativo para os espanhóis como um todo - as diferentes expressões nacionais que compõem o país. (O Museu de História de Girona tem uma seção muito legal só sobre a República e os seus levantes, e a cidade como um todo tem alguns espaços de memória das vítimas do franquismo). Desse modo, ao meu ver, apesar de fincar profundas raízes históricas, que remontam ao início da Idade Moderna, não precisamos voltar até a união das coroas dos reis católicos de Castela e Aragão no século XVI para compreender a briga dos catalães contra o Estado espanhol; creio que a experiência franquista dá muito o tom das expressões políticas que se têm hoje. Sob este argumento, a causa soberanista/independentista catalã me parece muito simpática, e com certeza, contaria com uma adesão imediata de minha parte.


O grande problema é como traduzir identidades e experiências políticas de um país para outro. Acho que não precisaríamos de uma pesquisa para saber que grande parte dos que hoje falam em separação do Sul/Sudeste do Brasil em relação ao Norte/Nordeste – ou do Rio Grande do Sul em relação ao resto do país - são os mesmos que relativizam a ditadura, ou inclusive defendem abertamente a sua volta, os mesmos que ressuscitam o argumento do “fantasma comunista” e por aí vai. Isto é, assumem claramente posições de direita, conservadoras, reacionárias. (É claro que, a não ser no período pós-independência e de formação do Estado brasileiro no século XIX, processo fortemente centralista, não existiram movimentos separatistas realmente sérios no país). Já aqui, o buraco é mais embaixo. E enquanto alguém identificado como politicamente “de esquerda”, isso me inquieta. A princípio, empresto minha simpatia à causa catalã, ainda que não tenha clareza sobre isso, especialmente sobre qual deveria ser seu destino, um Estado dentro da Espanha, ou separado do reino. Mas decidir sobre isso não cabe a mim, cabe aos catalães. Continuarei buscando a aprender sobre, e refinar minha posição, acompanhando de perto o procés...


PS: as informações e dados históricos, especialmente sobre os grupos políticos da Generalitat, foram extraídos de fontes de Internet e de minha absorção das informações de jornais e televisão; é possível que tenha me equivocado sobre algumas caracterizações, então sugiro consulta a outras fontes!

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