segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Colonialismo francês - parte III

Domingo, dia de passeio - ainda mais quando a gente não queria ficar roendo as unhas por causa das eleições no Brasil. Então, depois de muito incomodar a Juliane, a gente acabou indo no Museu de l'Armée francesa no antigo Hotel dos Invalides, onde também fica o túmulo de Napoleão. O Hotel é um desbunde só, é gigante e lindo e começou a ser construído no século XVII pelo Luís XIV (o cara do "O Estado sou eu") para servir como uma espécie de hospital destinado aos veteranos de guerra (os invalides). E mesmo diante de tanta Revolução, o Hotel abriga ainda a imagem do Luís XIV em seu pórtico.


Demos uma boa volta no museu e vimos também uma exposição com representações da Primeira Guerra Mundial. Um passeio que não foi exatamente barato, mas que pelo menos a gente tinha uma expectativa de que fosse diferente. Cabe salientar, contudo, que aqui na França - assim como em outros países - o tema da História Militar geralmente é apropriado por gente que ama de paixão o Exército e tá louca para ter um milico para chamar de seu. Geralmente essas visões muito militaristas perdem de vista algumas revoltas populares e o papel dos Exércitos no massacre delas...mas chegaremos lá.

Sobre o museu, dá para dizer que ele cansa um pouco e não só pelo tamanho. É porque ele segue o estilo de memorabília mesmo, ou seja, é um monte de objetos colocados para você apreciar e em diferentes contextos. Por exemplo: canhões. Desde os primeiros canhões, usados no século XIV pelo Exército francês, até a artilharia anti-tanques da Segunda Guerra Mundial, tudo está ali no museu. No início achei muito legal ver...tem uns desenhos que mostram inclusive o uso das armas na guerra medieval. Mas depois de ver o quinquagésimo canhão, a gente tem que respirar fundo e seguir em frente. O mesmo valia para as armaduras medievais, para as espadas, para as lanças...tudo isso era um tanto quanto cansativo depois de um tempo. Mesmo nas armas da Era Moderna e da Era Napoleônica, o que mais se via eram fardas de soldados, armas, armaduras, essas coisas. Depois de um tempo já cansava.


O próprio Napô deixa um pouco a desejar. O seu túmulo fica na catedral dos invalides e é colossal. Muito bonito, mas tirando uma voltinha dentro dele e uma eventual reverência ao desgraçado personagem histórico mais famoso do século XIX, o lance era voltar para o museu mesmo. A exposição da Primeira Guerra também era meio cansativa...muitos quadros legais, mas pouca organização, fazendo com que eles fossem colocados sempre ao lado de armamentos e sem muita problematização política e social.

Mas o ponto mais drástico do museu foi sem dúvida o dos apagamentos. A História da França é cheia de momentos onde o Exército e as classes populares se debateram e se apoiaram. Em 1792, em meio à Revolução Francesa, os líderes jacobinos promulgaram o governo da Convenção e deram armas para o povo para que eles enfrentassem juntos os invasores externos vindos da Áustria. Esfarrapado e com fome, milhares de franceses aceitaram isso porque o novo Exército era uma forma de ascensão social e de prestígio numa sociedade que recém arrebentava seus laços feudais. E no final das contas, poucas menções aos soldados sans cullotes.

Há que se lembrar também que os franceses tomaram um belíssimo pau em várias guerras, mas uma das mais significativas foi a Revolução Haitiana, que perdurou de 1792 a 1802 e garantiu a primeira independência na América a libertar, de fato, os escravos. Enquanto o museu tinha uma sala toda dedicada à "Revolução Americana", a "Revolução Haitiana", em que os escravos pegaram em armas contra os opressores franceses, não tinha absolutamente nenhuma menção.

Em 1871, após a França ter sido derrotada pela Prússia na Guerra Franco-Prussiana, os operários parisienses decidiram proteger-se da invasão e pegaram em armas. Cansados da guerra, proclamaram um novo governo: a Comuna de Paris. Porém, o novo regime francês (a Terceira República) decidiu acabar com a Comuna e durante semanas a cidade de Paris foi bombardeada e incendiada pelo seu próprio Exército. Como era de se esperar, nenhuma menção a isso no museu.

Antes da Primeira Guerra Mundial, o deputado socialista Jean Jaurés se colocou contra a guerra que se avizinhava e após um inflamado discurso pacifista, foi baleado por um nacionalista francês. Semanas depois, os soldados franceses marchavam cantando a "Marselhesa". 1,7 milhões de franceses mortos. Nada sobre os pacifistas e os soldados que se recusavam a lutar (vejam o filme "Glória Feita de Sangue", de Stanley Kubrick).

Na Guerra Civil Espanhola, a França socialista declarou-se neutra no conflito, embora tenha abrigado militantes anarquistas e socialistas que fugiam da ditadura franquista. Na Segunda Guerra Mundial, a resistência francesa contou com um papel decisivo dos comunistas. Nada disso é citado.

Mas o mais zueiro dos apagamentos franceses é a parte sobre imperialismo e colônias. No século XIX há menção do imperialismo francês e uma demonstração de armas e comportamentos dos soldados coloniais. Mas nada de autocrítica. Nem uma vírgula. A França colonizou boa parte do mundo entre os séculos XIX e XX, mas as referências são mais para dizer que isso aconteceu. Isso não é motivo de vergonha, não há um mea culpa. Há somente uma longa exibição de armas e trajes militares. E, é claro, de cartazes de propaganda da metrópole francesa conclamando os povos colonizados a lutarem pela França - de 1840 a 1950. Nada sobre a guerra criminosa empreendida pelos franceses na Argélia, nada sobre os massacres ocorridos na África Ocidental. Apagamento.

A Juliane falou ontem que isso tem a ver, mais uma vez, com a forma como os franceses se percebem na sua narrativa histórico-identitária. Ou seja, se no Brasil a gente vê a colonização como uma chaga a ser superada, na França ela é só um episódio. Eles não celebram mais ela (até 1931 eles faziam "exposições coloniais"), mas não quer dizer que critiquem. Passou. Como as colunas romanas, como o túmulo de Napoleão, como a Belle Époque... Um passado não-recuperável porque, nesse caso, não interessa para eles.


Nenhum comentário:

Postar um comentário