terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Passados em Berlim

Berlim certamente foi a nossa viagem mais surpreendente. Ao contrário do que pensávamos antes, a cidade foi mega-calorosa conosco. Os berlinenses são "bem de boa" e o clima da cidade é muito alternativo. Mas como historiador, Berlim se diferenciou de tudo que eu vi na Europa: essa é uma cidade sem orgulho de seu passado.

Talvez essa seja a visão comum dos alemães - e não só dos berlinenses. Talvez seja porque Berlim é uma cidade cheia de imigrantes estrangeiros e alemães ("ninguém é de Berlim", nos disse uma moça simpática no trem). O fato é que, ao contrário de todas as cidades que visitamos, Berlim não pretende congelar o tempo e reviver um passado glorioso.

O nosso primeiro impulso, claro, é dizer "ufa"! Até porque, Berlim foi a capital que mais experimentou regimes ditatoriais no século XX. Se orgulhar de um passado glorioso significaria ter orgulho do genocídio.

Mas nas demais cidades do Velho Mundo, a tônica é o congelamento artificial do passado mesmo e sem problematizar esse passado presentificado. Assim, Paris tenta continuar vivendo a Belle Époque, Praga e Varsóvia tentam reproduzir a Idade Média, Roma tenta dar a ideia de uma Renascença... Mas e Berlim? Berlim está em 2014.

Aqui, os prédios gigantescos retomam a estética pavorosa do lado oriental. As ruas são feias, há pichações em todos os lados, as estações de trem são sujas. O rio Spree é cinzento, é possível ver as fábricas expelindo fumaça no horizonte. Essa estética, que a Juliane acertadamente chamou de "estilo Cristiane F.", torna Berlim a cidade mais feia entre as que visitamos. E, ainda assim, a mais viva.

Na parte oriental, onde ficamos, ainda há algumas menções ao antigo regime socialista e ao muro (que têm várias partes intactas). E, claro, tem a ilha dos museus, que concentra acervos inteiros de relíquias históricas do auge do imperialismo alemão pré-nazista - isso porque o que os nazistas roubaram foi retornado para os países de origem. E não dá para esquecer do Portão de Brandenburgo e da Coluna da Vitória, que são monumentos à Unificação Alemã (e, é claro, uma zuadinha na França).

Mas isso não implica em orgulho. Aliás, em Berlim não parece haver um orgulho alemão. Talvez um orgulho berlinense, que é basicamente o orgulho de não ter lá muito orgulho.

No início cheguei a pensar que Berlim era como o Brasil, construindo essas narrativas onde se sente um complexo de inferioridade. Mas creio que há diferenças: enquanto no Brasil a nossa tendência é atropelar a história, aqui em Berlim eles consideram que lembrar ela é fundamental.

Certa vez fiz um passeio numa charqueada em Pelotas e a guia mostrou a Senzala de longe, mas não nos levou lá porque "não tinha necessidade de falar dessas coisas tristes". E para mim, essa foi a síntese de como nossa sociedade costuma lidar com o passado. Parece ser exigido um esforço político gigantesco para reconhecermos os erros de nosso passado.

E Berlim? Em Berlim, os buracos de bala da Segunda Guerra Mundial ainda estão em alguns prédios. Há uma série de lugares de memória sobre o nazismo e suas vítimas (incluindo ciganos, homossexuais, presos políticos, testemunhas de Jeová e, é claro, judeus). O muro segue ainda em boa parte da cidade. O passado, aqui, parece vir em forma de trauma. Ter orgulho dele, em Berlim, parece impossível.

Uma cidade viva, suja e feia, que vê na sua existência uma espécie de trauma coletivo e violento, especialmente quando olha para o passado. Em meu imaginário, Berlim é assim desde os anos 1920. Quase cem anos olhando para trás e cada vez mais se sentindo responsável pelas barbáries. Imperialista, nazista, capitalista, socialista...traumatizada e traumatizadora. E absurdamente original.

Memorial às vítimas do Holocausto, Berlim

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