segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

O Haiti não é aqui...

Hoje eu e a Ju fomos visitar uma exposição rolando no Grand Palais acerca da arte do Haiti. Parecia bem interessante e o preço super nos cativou (pague um ingresso, leve dois! 12 euros, uma pechincha para os padrões franceses). Além disso, não havíamos ainda visitado o Grand Palais, que é um dos principais espaços de exposições de Paris. Então, água na mochila, câmera no pescoço e allons-y.

Ambos gostamos da história haitiana, mas admitimos que sabemos pouco mais do que o básico sobre ela. A ilha de Hispaniola (onde ficam Haiti e Rep. Dominicana) foi colonizada por espanhóis, mas em 1697 os franceses ficaram com a metade de onde hoje se encontra o Haiti. E em pouco menos de um século, a colonização do Haiti pelos franceses se tornou tão extensiva que aquela singela parte da ilha, com uma área um pouco maior do que a do estado do Sergipe, se tornou o maior produtor de açúcar do mundo. Como isso foi possível? Bom, a escravidão atlântica abasteceu o Haiti de mão-de-obra necessária. Nos finais do século XVIII, a população escrava haitiana atingia 90% da colônia - desse valor, somente 5% era de brancos que moravam no Haiti. Por esse tipo de tensão, os principais líderes negros e escravos do país lutaram pela sua independência, motivados principalmente pela Revolução Francesa e seu apelo por igualdade, liberdade e fraternidade. O Haiti foi o segundo país das Américas a se libertar do domínio colonial (1804) e o primeiro a abolir a escravidão no mundo inteiro.

A história fica ainda mais interessante quando a gente lembra da influência de cultos de matriz iorubá no Haiti e do sincretismo que os caras tiveram com o cristianismo diante da escravidão. Desse sincretismo nasceram religiões variadas, como por exemplo o vudu - considerada uma das principais religiões no Haiti ainda hoje. E do vudu, uma série de mitos e rituais foram consagrados, sendo o mais famoso aqueles que envolve feitiçaria sobre objetos e a ressurreição dos mortos. Tudo isso torna, sem dúvida, o Haiti um lugar exótico, de uma cultura que fascina a gente.

Mas esse talvez seja o problema: para gente, o Haiti não é aqui. E pelo visto, nem para os franceses.

A exposição é interessantíssima, é verdade. As obras são bem menos canônicas, muita coisa contemporânea e que realmente não conhecíamos. A proposta da exposição era de criar eixos temáticos, abordando basicamente as críticas políticas, as imagens do cotidiano, as imagens do sagrado e os diálogos entre diferentes artistas (alguns deles que nem eram haitianos, mas ok). Aqui, já uma bronca minha: a ideia dos curadores era fazer uma exposição que abordasse dois séculos da arte haitiana, mas não falava nada da revolução haitiana e da escravidão. A Ju chegou a colocar que talvez fosse o recorte temporal...mas vindo de uma exposição realizada na França, ponderamos que talvez esse recorte não tenha sido "sem querer" e que pode, sim, ter um certo apagamento de algo que mais do que orgulho ao Haiti, deveria causar vergonha aos franceses.

A parte sobre as cenas do cotidiano são interessantes e resgatam aspectos como a cultura religiosa suburbana, a marginalidade, os afetos, a homofobia...tudo isso sempre diante de algo que parece ao mesmo tempo muito próximo da gente, que é brasileiro, mas diante de alguém que não vive na América Latina - como os parisienses - talvez isso seja só "exótico".

Já quando entramos na parte religiosa, aqui nosso lado mais etnocêntrico disparou. Tudo parecia bonito, assustador, colorido, vivo...o sincretismo religioso haitiano explora algumas coisas que para nós até é familiar, mas com características muito singulares e que a gente não sabia como lidar. Esse impacto se dá vendo algumas das obras, onde imagens sagradas, caveiras humanas e símbolos maçônicos se misturam a alegorias de Cristo e de demônios. Dá um nó na cabeça tentar decifrar tudo isso e a nossa tendência mais imediatista é de novo, falar do exótico, daquilo que só conseguimos chegar perto pelo "sensorial": ou seja, é bonito, é feio, dá medo, faz rir.





Na parte política, é interessante notar que ela explica a tradição da arte haitiana do século XIX em fazer retratos de personalidades políticas - uma forma inclusive de enfrentar o racismo europeu, que "clareava" os líderes do Haiti. Essa tradição virou também uma arma política, especialmente no século XX, criticando as ditaduras dos Duvalier (Papa Doc e Baby Doc). Uma das obras mais interessantes eram dois retratos dos principais ditadores haitianos feitos com uma pistola de grampos e com o sugestivo título de "shooting back", feito pela artista Sasha Huber.



Já nos diálogos com os artistas é que ficamos ainda mais encafifados. Um desses diálogos mostrava um vídeo feito pela mesma Sasha Huber, que falei ali em cima. Nele, havia uma homenagem ao terremoto que atingiu o Haiti em 2010. O vídeo então mostrava um campo de neve na Finlândia e uma atriz branca, loira, vestida com as cores do Haiti. A partir daí, ela se deitava no chão, fazia um anjo de neve e o processo se repetia até que a tela toda fosse coberta pela mesma imagem (disponível no Youtube) Achamos interessante, mas ali criou uma sensação muito complicada: ela é uma artista suíça, fazendo uma homenagem ao Haiti na Finlândia. Será que é válido? Será que ela consegue fazer isso sem cair numa coisa quase de condescendência? E a partir daqui, não sei quem vai ter fôlego, mas eu e a Ju ficamos um bom tempo falando disso.

Afinal, é possível falar de uma outra terra que não seja a nossa sem cair nem na opressão e nem na condescendência? É possível falar de alguém que é oprimido sem cair nem em A e nem em B? Tenho direito de falar algo sobre esse oprimido? Cogitamos que na tragédia, claro, é possível. A dor dos haitianos é a mesma dor que se abate sobre tantos outros povos, em diferentes momentos da História. A tragédia tem uma coisa de universalidade, que faz a gente pensar que somos todos iguais. Tem que ser bastante filho da puta para não sentir empatia diante da tragédia, né?

Pois é, mas quando a gente aproxima um pouco mais o olhar, a gente começa a se incomodar. Eu posso falar do outro quando ele é vítima. Mas quando eu me percebo como opressor, será que eu ainda posso falar numa boa sobre o outro? Será que eu tenho que me calar e esperar que ele construa a narrativa sobre si? Será que isso não fica mais fácil quando eu deixo o outro falar? Mas se eu "deixo" ele falar, isso não significa que as coisas ainda estão fora de compasso? Será que eu consigo me enxergar perpetuando a visão condescendente? E, talvez ainda mais difícil: será que eu consigo me enxergar também como opressor, como preconceituoso e machista, por exemplo?

A gente voltou pra casa e a ideia era que a Ju escrevesse um texto, sobre outro tema e outra situação. Mas eu fiquei incomodado. O nosso debate levantou uma pá de perguntas que eu nem sei como responder. Exige ler mais, estudar mais e saber que a situação é muito mais complicada do que supõe a minha vã filosofia. Mas não tinha como não falar disso, porque no final das contas, a exposição cumpriu um papel muito mais interessante do que o que ela se propunha. Para pensar o outro, é fundamental pensar sobre si. E pensar sobre si é um dos fundamentos centrais da nossa visão-de-mundo-zueira-dialética.

PS: Em tempo, é bom dizer que apesar de ser suíça, a Sasha Huber é descendente de haitianos. Mas isso não invalida as perguntas do texto, né?

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