quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Turismo à la gauche

Talvez alguns dos leitores não saibam, mas eu tenho um certo fascínio por peças e monumentos que remetam à esquerda nos séculos XIX e XX – se bobear, do XXI também. Acho incrível quando a cultura política e social de um grupo se torna, senão dominante, hegemônica o suficiente para ser reconhecida e colocada em museus ou virar nome de rua. Porém, Paris, uma capital com um passado revolucionário – para dizer o mínimo – tem muito pouco para contribuir nesse tipo de turismo amalucado que eu gosto de fazer, o que tem sido um tanto quanto decepcionante.

No geral, a França revolucionária guarda pouco de seus registros. A Paris da Belle Époque ainda é a época favorita dos turistas e é preservada ao máximo. Mas, do passado jacobino, não dá para dizer o mesmo. Um exemplo disso é a chamada praça da Bastilha. Local onde antes se concentrava a fortaleza-prisão mais simbólica da monarquia francesa que caiu nas mãos dos revolucionários franceses no 14 de julho de 1789. Foi considerado o evento mais simbólico do período e acabou precipitando a saída do rei Luís XVI do palácio de Versalhes, em outubro do mesmo ano. Alguém poderia dizer: nossa, que tipo de monumento eles poderiam fazer ali? Bom, como a Bastilha foi destruída, restou muito pouco. Mas o Estado francês construiu um monumento naquele mesmo lugar: uma gigantesca coluna chamada “colonne de julliet”. Criada em 1830, após a Revolução que derrubou o rei Carlos X, a coluna foi colocada ali para que se criasse o paralelismo tão caro aos revoltosos da época: ou seja, que 1789 e 1830 eram a mesma coisa. Mas tirando isso, devo dizer que foi frustrante ver a praça. Ela não tem praticamente nada que rememore o passado revolucionário francês, exceto a coluna.



O mesmo poderia se falar da “place de la concorde”, uma praça que fica na frente do jardim das tulherias. Em 1792, após a traição de Luís XVI e a sua condenação à morte pelo Comitê de Salvação Pública, ela tornou-se a “place de la révolution”. É nessa mesma praça que será instalada a invenção mais democrática da Revolução Francesa: a guilhotina, que garantia o mesmo tipo de morte para o cavaleiro real, para o burguês, para o padre e para o sans-cullote. Um monte de gente famosa foi executada ali: Maria Antonieta, Danton, Lavoisier, Hebért Saint Just, Robespierre. Porém, há poucos monumentos na região que relembrem esses eventos. Isso ocorre porque depois da queda do governo jacobino, em 1795, a praça foi rebatizada como “place de la concorde”. No século XIX ela acabou sendo usada muitas vezes para afirmar a restauração monárquica, seja por Luís XVIII, Carlos X, Luís Felipe de Orléans... No final das contas, a praça têm um simbolismo político bastante especial nos dias de hoje. Quando a “gauche” vence eleições, ela comemora na “place de la Bastille”. Quando a direita vence, ela comemora na “place de la concorde” – que na verdade, é muito mais uma homenagem ao triunfo das forças restauradoras.


Porém, quem tá pensando num turismo à la gauche, a minha principal dica é visitar o Pére Lachaise, o maior cemitério de Paris. Construído durante o período napoleônico, ele se tornou o mais famoso cemitério francês, com alguns dos mortos mais famosos da França fazendo seu descanso eterno em suas terras. Mas alguns de seus mortos menos famosos também podem ser encontrados ali. Em 1871, durante a Comuna de Paris, os últimos soldados comunardos foram fuzilados nos muros do cemitério e lançados numa cova coletiva. O historiador Horatio Gonzalez salienta que a repressão dos republicanos durante a Comuna foi marcada por extrema violência e que pela primeira vez, numa guerra moderna, os ataques a civis foram liberados pelos oficiais do Exército francês. Infelizmente, no século XX os ataques à civis e as covas coletivas se tornaram cada vez mais constantes – em experiências que transitaram entre a direita e a esquerda.


Admiro muito a experiência histórica da Comuna de Paris, seu sentido federativo e altamente democrático. As noções anarquistas e comunistas colocadas em prática pela primeira vez, com muitos erros mas também muitos acertos. Mas foi uma experiência curta: iniciada em março, a Comuna não conseguiu resistir aos ataques conjuntos do Exército francês e do Exército prussiano. Os comunardos fuzilados ganharam uma homenagem no Père Lachaise e se tornaram um ponto de referência para quem se interessa pelo turismo gauche. Ao redor deles, republicanos e brigadistas internacionais que foram para Espanha na Guerra Civil, lutar contra o fascismo. Há também soldados da resistência anti-nazista que eram socialistas. Muitas homenagens aos mortos nos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Comunistas e lideranças políticas de esquerda...a ala norte do Pére Lachaise apresenta um pequeno reduto onde a morte de utopistas aparece ao mesmo tempo como saudação fúnebre, mas também como monumento da barbárie – nos dizeres de um vizinho nosso aqui na Dombasle.

O que lamento foi não ter trazido uma rosa vermelha para esses mortos do Père Lachaise. Mas tampouco esperava encontra-los ali, permitindo a rememoração do passado revolucionário francês.

OBS: Bonus track do turismo gauche no Pére Lachaise é encontrar Paul Lafergue e Laura Lafergue (ou Laura Marx, filha do velho barbudo). Eles foram sepultados próximos do muro dos fedéres, onde os comunardos foram fuzilados. Paul Lafergue também foi o autor de “O direito à preguiça”



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