sábado, 20 de setembro de 2014

Cordialidade versus Politesse

Certa feita, fazendo um curso com a Jeanne Marie Gagnebin (para que não conhece: é A especialista em Walter Benjamin no Brasil, professora na Unicamp, suíça de nascimento, residente no Brasil desde 1978), ela comentou que ao chegar no país resolveu fazer as aulas que o Roberto Schwarz ministrava na Unicamp na época para tentar entender melhor o seu novo país. Ela não fez grandes comentários sobre essa experiência, mas relatou a falta que lhe fez uma indicação da leitura de Raízes do Brasil, do Sérgio Buarque de Holanda, o que teria facilitado o seu processo de adaptação. Segundo seu depoimento, muito menos gafes ela teria cometido.


Nesse livro, Buarque enfatiza um funcionamento social brasileiro: a cordialidade, comportamento propenso à informalidade e gerido pela emoção/afetividade, mas algo que não tem nada de pacífico ou gentil. Um dos episódios usados como exemplares no livro é o relato de comerciantes holandeses quando no Brasil: segundo eles, era impossível fazer negócios aqui sem antes se tornar "amigo" do comprador/vendedor. Bom, alguém pode dizer: olha que legal, como somos afetivos! E o problema está exatamente nesse ponto: apagamos as distâncias e pessoalizamos relações. Um exemplo clássico da cordialidade é o compadrio, que permite que regras sejam esquecidas em nome de um vínculo afetivo. Ou mesmo a ideia da lei apenas como uma referência, não como algo a ser seguido ao pé da letra. 

Por aqui, parece não haver espaço para essa afetividade cordial que nos é tão comum. Dia desses, conversando com brasileiros fumantes, eles relataram que os franceses não dividem cigarro, nem bebida, e o fato de pedir um cigarro para um deles pode parecer ofensivo. Me dei conta então que aqui as porções são (quase) todas individuais: a cerveja vem em long necks ou no pint (copo); o comum em restaurantes no almoço é o “prato do dia”: entrada + prato principal + sobremesa, tudo individual; nos cardápios, tudo individual pelo que vi até agora.  Um outro ponto que chama a atenção é a impossibilidade de fazer visitas surpresas: não há um interfone, salvo prédios mais modernos pelo que vi, e um número de apartamento (nós moramos no 1ª andar à direita, por exemplo). Se você quiser me visitar vai precisar me avisar antes e/ou eu te dar a senha para entrar no prédio, ou eu te esperar ali fora para abrir a porta. 

Em contrapartida, como os espaços são pequenos, no bar você vai ficar grudadinho no seu vizinho de mesa (que é minúscula!), podendo ouvir toda a conversa dele. Ontem estávamos em um bar aqui perto de casa, na rua, com um monte daquelas mesinhas redondas grudadinhas umas nas outras e em cada mesa, duas ou três pessoas. Olhamos para os nossos vizinhos de mesa e pensamos: se estivéssemos no Brasil isso logo viraria uma grande mesa de bar (como a gente adora!) e nós todos  nos tornaríamos "amigos". Só que aqui, enquanto as pessoas estão fisicamente muito próximas, parece não haver nenhum interesse em uma confraternização.

Imagem meramente ilustrativa

Ao mesmo tempo, eles são muito polidos: em qualquer lugar que você entrar receberá um “bonjour”, muitas vezes acompanhado de um “madame”/ “monsieur” (olha, nos últimos 32 anos devo ter sido chamada de "senhora" muito poucas vezes no Brasil). No final, um “au revoir” junto com um “bonne journée / bonne soirée”, ou algo que o valha. No Brasil, o contrário: mal damos bom dia, mas logo já estamos nos chamando por apelidos e nos dando beijinhos.

Se nós precisamos nos tornar "amigos" para nos relacionarmos, apagando formalidades e hierarquias, aqui isso parece estar completamente fora da jogada: a polidez, que permite que sejamos todos educados, também nos afasta pela formalidade que lhe é intrínseca. Não digo que isso seja ruim (nem bom?), mas me pergunto qual o espaço que a zueira tem nesse funcionamento, com esse marco civilizatório tipicamente francês: faz da relação com o outro uma cortesia. E a zueira nem sempre é cortês.

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