terça-feira, 11 de novembro de 2014

Um feriado para não esquecer

No dia 11 de novembro, os franceses comemoram o dia do armistício (ou jour du souvenir, ou jour de l'armistice). E essa comemoração é meio fúnebre na verdade, porque ela celebra o fim da Primeira Guerra Mundial - que em 2014 fechou cem anos de existência. Foi no dia 11 de novembro de 1918, que os países envolvidos assinaram um armistício que deu início as negociações de paz, pondo fim a Primeira Guerra.

O Fernando sempre achou interessante o tema da Primeira Guerra Mundial. Segundo ele, isso é porque ao contrário de muitas guerras da era moderna e contemporânea, essa foi uma guerra que não conseguiu construir uma narrativa que trouxesse junto a perspectiva de "mocinhos X bandidos". Apesar de todos os apelos patrióticos que a guerra exortava, o que aconteceu foi tal destruição que os soldados voltaram mudos, calados. Eles tinham pouco a dizer sobre o que ocorrera, sobre toda a destruição que testemunharam (e o Walter Benjamin e o Freud já falaram disso como ninguém).

Por conta disso, o College de France fez uma série de palestras esse ano para retomar os cem anos da guerra. O Fe foi assistir uma palestra da Michelle Perrot num desses dias, falando sobre como a Primeira Guerra Mundial teria modificado a percepção francesa sobre o amor. A palestra tinha sido muito interessante, ainda mais que a base das reflexões da autora eram justamente as cartas que alguns casais trocavam no período: eles, soldados no front; elas, tendo que entrar no mercado de trabalho. Insensíveis aos apelos românticos da Belle Époque, essa nova geração passou a separar sexo de amor. Sexo para os homens do front, só com prostitutas - que muitas vezes eram mulheres dos territórios conquistados que se entregavam aos soldados em troca de comida. Para as mulheres, sexo dependia dos homens que não iam para a guerra. Mas Perrot indica que o que acontece é exatamente um boom nas experiências homossexuais entre mulheres, principalmente segundo a imprensa da época, estarrecida com os casais de mulheres que não precisavam mais de um homem. Além disso, o uso de linguagem chula e palavrões passou a ser uma constante nas cartas, indicando a falta de uma linguagem acessível para comunicarem suas experiências: a do homem a destruição e a da mulher a repetição automática do trabalho industrial.



Mas há outras histórias interessantes do tipo de destruição-criação dos valores ocorridos na Primeira Guerra Mundial. As que eu acho mais interessantes são as histórias de deserção, dos soldados que não querem mais lutar pela pátria porque não veem mais sentido nisso. Tem alguns ótimos romances sobre o assunto, como o clássico Nada de Novo no Front (onde a visão sobre a guerra não tem nenhum romantismo) e o também clássico Adeus às Armas (onde aí sim tem uma história de deserção). No cinema, o filme mais antológico sobre o assunto certamente é o Glória Feita de Sangue, de Stanley Kubrick. De fato, muitos desertores foram chamados de covardes pelos seus países...mas o esforço de recuperar essas histórias mostra que mais do que covardes, eram seres humanos de carne e osso que não aguentaram lidar com uma guerra onde a destruição tinha sido de tal ordem nunca antes vista.


Hoje os franceses comemoram tanto os soldados desconhecidos, mas honram também aqueles que foram fuzilados como desertores. De fato, a França foi o país que mais executou seus próprios soldados (os números variam entre 613 a 918 jovens que foram fuzilados pelo crime de deserção na Primeira Guerra Mundial). Cerca de 40 desses casos receberam perdão póstumo e tiveram seu nome "limpo" de qualquer acusação - entre eles, um jovem soldado que se recusou a usar as roupas de um companheiro morto na trincheira para se aquecer, sendo acusado (e condenado) por insubordinação. Ano passado, em 2013, foi feito um monumento a 613 desses soldados no museu dos Invalides (devo dizer que a gente não viu isso), mas acabou gerando uma polêmica com a Front National, o partido de extrema-direita que acreditava que honrar os "covardes" era uma forma de desmerecer a luta dos soldados que "morreram pela França" (não sei vocês, mas ficamos chocados).


Assim, hoje uma série de manifestações oficiais ocorrem na Place de l'Étoile (ali no Arco do Triunfo) e em outros lugares da Europa, como Londres. Aqui as comemorações se dão entre 2014-2018. A televisão está com cobertura direto da praça francesa e os jornais locais deram destaque a data também. O Libération destacou a inauguração, hoje, do "Anneau de la Mémoire", um monumento (50 placas) com cerca de 579 606 nomes de soldados mortos nos campos de batalhas, de diferentes lugares do mundo. Já o Le Monde chamou a atenção para os lugares de memória virtuais, como o Grand Memorial, a ser inaugurado, contendo mais de 8 milhões de fichas militares de soldados franceses que participaram da guerra. Além desse, eles já tem o Mémoire des hommes, com registros funerários e onde podemos ler descrições de batalhas, dia a dia dos soldados, etc.. O site está um pouco ruim hoje, mas é bastante perturbador encontrar, por exemplo, 4 pessoas com sobrenome Megier (da minha vó materna, filha de poloneses) e 11 Welter (do meu avô paterno, descendente de alemães). Você tem acesso aos atestados de óbito, inclusive.


No geral, não tem nada de zueiro comemorar o fim da Primeira Guerra Mundial. O clima, em geral, parece relembrar uma espécie de luto - que contrasta com as primeiras decorações de Natal nas ruas. Ele não é um feriado para honrar o militarismo (desde 1920 os veteranos exigiram que esse dia fosse celebrado sem desfiles militares), mas mais para lidar com um trauma nacional. Um trauma que a gente no Brasil conhece só de longe - mas que aqui eles parecem reforçar a presentificação da tragédia da guerra.

Curiosidade: hoje é dia dos franceses portarem o azul, e os ingleses o vermelho, em comemoração ao dia.

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