domingo, 16 de novembro de 2014

Pensando (ainda) sobre Auschwitz

"Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie" - Walter Benjamin

Auschwitz é hoje um museu. Um museu como nunca vimos antes. Ele é a ruína do principal complexo de extermínio criado pelos nazistas, composto por três campos: Auschwitz I, Auschwitz II - Birkenau e Auschwitz III - Monowitz. Nesse campo de concentração e extermínio, mais de 1 milhão e 300 mil pessoas perderam a vida nas mãos de um intrincado e moderno sistema de destruição. As suas ruínas foram transformadas oficialmente em museu a partir de 1947, quando a Polônia realizou uma exibição de tudo que os nazistas deixaram para trás. Hoje ele é considerado patrimônio da humanidade pela UNESCO.


É possível afirmar, pela nossa percepção sobre as ruínas atuais de Auschwitz, que elas trazem dois marcos para quem quer conhecer essa história: o primeiro é o da Solução Final. Em 1942, Heinrich Himmler, chefe das SS (as principais tropas nazistas), passou um memorando à administração do campo para a execução da Solução Final do Problema Judeu. Basicamente definia que os judeus de todos os territórios ocupados pela Alemanha deveriam ser fisicamente exterminados. A partir daí, milhões de judeus confinados em guetos e campos de concentração passaram a ser transportados para os campos de extermínio. A execução em massa foi colocada em prática em Auschwitz já nesse momento e se calcula que 90% dos mortos eram judeus. Os demais eram ciganos (Bikernau tinha uma parte dedicada somente aos roma, que é a definição correta para esses povos), prisioneiros soviéticos de guerra (a maioria deles foram usados em experiências "científicas" e torturas pelos médicos de Auschwitz), presos políticos de origem polonesa (geralmente eram fuzilados e/ou enforcados em julgamentos conduzidos pela Gestapo).


O segundo marco é a destruição do campo, feito realizado pelos próprios nazistas. Em janeiro de 1945, diante dos avanços do Exército Vermelho, os nazistas decidiram destruir as evidências de seu crime em Auschwitz. Dos 5 crematórios que o complexo de Auschwitz - Birkernau, somente um não foi explodido a tempo - ele foi transformado num abrigo antiaéreo pelos oficiais nazistas. Desses 5, 3 foram destruídos com dinamite e um deles foi destruído após uma revolta de um grupo judeu que ia para a câmara de gás mas que conseguiu destruir o lugar. Cada crematório era acompanhado de uma câmara de gás e, nela, se montavam chuveiros falsos e se prometia aos prisioneiros um banho de "descontaminação". O que ocorria, contudo, é que os nazistas trancavam as pessoas e abriam latas e mais latas de um pesticida conhecido como Zyklon B. O gás entrava por uma tubulação no teto e sufocava todos em questão de minutos. Assim, 20 minutos depois, os mortos eram recolhidos. Suas obturações, próteses, óculos, brincos e jóias eram retirados e os corpos eram então incinerados.





Essas são as duas principais narrativas presentes ao andar em Auschwitz 70 anos depois. A destruição física de 1 milhão e 300 mil pessoas e a tentativa dos nazistas em apagar seus vestígios diante do fim da guerra.

No complexo de Auschwitz I, que é o mais famoso, encontramos o portão de ferro com a frase gravada: "o trabalho liberta" (Arbeit Macht Frei). Esse lema estava inscrito em quase todos os campos de concentração da Alemanha nazista, se referindo ao fato de que os prisioneiros só podiam alcançar sua liberdade se trabalhassem. Diferentes companhias alemãs se aproveitaram disso e usaram da mão-de-obra dos prisioneiros (Wolkswagen, Porsche, Thyssen, Krupp, Bayer, Louis Vuitton, entre algumas das mais famosas). Mas o complexo Auschwitz-Bikernau não era só um campo de concentração. Ele era também um campo de extermínio. Se havia alguma liberdade possível para os presos em Auschwitz, ela se encontrava em resistências praticamente suicidas. Ou na própria morte.


Quando os presos chegavam, eles eram devidamente fichados e catalogados. Mulheres eram separadas dos homens e as crianças, dependendo da idade, geralmente ficavam com as mulheres. Lá, ambos eram despidos e obrigados a abandonar suas roupas e seus pertences, utilizando um uniforme listrado e com diversas identificações sobre o motivo pelo qual estavam no campo. Essas identificações eram costuradas nas roupas (triângulos e estrelas de diferentes cores) e, no caso dos judeus e dos ciganos, na tatuagem de registro - nos roma elas eram feitas na coxa, nos judeus no braço. Se calcula que cerca de 1/4 das pessoas que chegavam em Auschwitz iam para os campos de trabalho forçado. Os demais chegavam tão combalidos que sequer tinham chance de se recuperarem.  As viagens de trem eram longas e os prisioneiros eram confinados podendo ficar até mesmo 7 dias sem comer e bebendo basicamente a água degelada da neve. Os que não tinham condições físicas iam direto para as câmaras de gás.

No museu de Auschwitz, os prédios intactos de Auschwitz I guardam as recordações desses momentos de angústia. Documentos vários, mas também as evidências físicas da destruição. Próteses, óculos, brinquedos de crianças... Numa das salas, as malas daqueles milhares de deportados. Os judeus húngaros acreditavam que ao chegar na Polônia, receberiam lotes de terra e teriam um emprego. São eles o maior número de mortos em Auschwitz: ao todo foram 438 mil judeus húngaros. Essas promessas não cumpridas explicam milhares e milhares de malas com os nomes das pessoas que ainda acreditavam que não estavam indo para Auschwitz para serem exterminados. Ironicamente, o campo era chamado pelos nazistas de "Canadá", pois os poloneses acreditavam que o Canadá era uma espécie de nova terra prometida para eles fugirem.


Ao chegar lá, problemas com a higiene, a qualidade da água, a qualidade da comida e a necessidade de conviver com os próprios excrementos criavam péssimas condições de habitação. Num dos relatórios, é possível ver que um surto de disenteria ocorreu no campo por conta da linguiça, usada nos ensopados, estar cheia de coliformes fecais (em tempo: para muitos judeus praticantes, o consumo de carne de porco é proibido...e os nazistas sabiam disso). Em outros, pede-se para que os prisioneiros não revirassem o lixo para comer - pois os oficiais tinham dado ordens para colocar veneno de rato nas lixeiras. A degradação era constante - e o tipo físico se alterava com isso. Os sobreviventes viviam à beira da morte por inanição. A falta de calorias, o trabalho extenuante de 10 a 12 horas diárias no frio e a falta de água potável criavam situações terríveis.


Porém, pouca coisa nos chocou tanto quanto a entrada numa das salas onde estavam os resquícios do extermínio. Montes e montes de cabelo humano, colocadas ali, empilhadas e contabilizando toneladas de fios. Esses fios eram vendidos para companhias têxteis que faziam tecidos a partir dele. No total, 1950kg desse cabelo são expostos ali para os visitantes lembrarem desse horror. Mas há um dado mais assombroso: o cabelo era comprado em sacos de 1kg por míseros 50 pfening (ou 50 centavos do marco alemão da época). Naquele momento, a sensação é de vertigem - como se não soubéssemos o preço da vida humana, mas ao menos o de seus cabelos. Como se eles pudessem ser separados daqueles corpos que riam, choravam, amavam, odiavam, temiam...

A total destruição é narrada em diferentes ângulos. A parte específica dos prisioneiros políticos em Auschwitz I parece menos desumana do que estamos habituados. Mas isso é um ledo engano. Somos lembrados que essas pessoas tinham julgamentos sumários, sem direito de defesa e sentenciadas à morte - por enforcamento, como demonstração pública de terror, ou por fuzilamento. Alguns desses prisioneiros, contudo, serviam como cobaias para os médicos e cientistas que habitavam Auschwitz. Prisioneiros soviéticos, por exemplo, foram os primeiros a serem usados para os testes do gás Zyklon B. Cerca de 600 desses prisioneiros foram usados nos testes com o gás em 1941 - posteriormente a administração do campo matava esses prisioneiros em grandes valas coletivas ao arredor de Birkenau.

Nesses espaços havia também o campo das torturas. A ideia de "métodos científicos" para torturar foi levada a sério pelos nazistas. Eles calculavam quanto tempo um preso poderia ser afogado antes de perder a consciência, quanto tempo levava para ele morrer de fome, quanto tempo levava para morrer sem poder se mexer numa cela minúscula a rés-do-chão... Tudo isso era calculado e transposto para diferentes práticas para se obter informação e repassado diretamente para a Gestapo, a polícia secreta nazista. Por que os prisioneiros políticos eram usados para esses fins? Segundo os nazistas, todo inimigo político do sistema era visto como "bolchevique", ou "comunista". A ideia de um mundo dicotômico (nós X eles) facilitava os carrascos, médicos e torturadores a tratarem aquelas pessoas como indignas a qualquer respeito ou princípio humano. Uma prática que fora alargada posteriormente para todos que estavam no campo de concentração.

Aqueles que iam para os campos geralmente eram considerados criminosos pela legislação nazista. As prisões não eram mera arbitrariedade, mas processos documentados onde se comprovaria o crime num tribunal fechado. Para catalogar esse contingente, os nazistas criaram legendas de insígnias que acompanhariam os uniformes dos presos: 

Triângulo vermelho: prisioneiros políticos.
Triângulo vermelho invertido: prisioneiro de guerra ou espião.
Triângulo verde: criminosos comuns (geralmente esses eram transformados em kapo, capatazes que eram responsáveis por "disciplinar" os grupos de trabalho).
Triângulo azul: trabalhadores escravizados de terras conquistadas pelo nazismo.
Triângulo roxo: testemunhas de Jeová e demais grupos religiosos que não juravam lealdade ao partido nazista.
Triângulo rosa: homossexuais, pedófilos, estupradores e zoófilos.
Triângulo preto: indivíduos antissociais. O termo era usado principalmente para os roma, mas também para alcoólatras, deficientes, mendigos, pacifistas, prostitutas, viciados, entre outros.
Triângulo marrom: Usado somente para os roma em Birkenau, para diferenciá-los dos demais "antissociais".


A estrela de David amarela marcava os judeus. Porém, muitas vezes o indivíduo era judeu e fazia parte de um dos grupos. Assim, formava-se uma estrela a partir de dois triângulos: o triângulo que identificava o seu crime e o triângulo amarelo, que atestava que o indivíduo era também judeu.


As múltiplas nacionalidades perseguidas e atingidas pelo campo foram devidamente contempladas com exposições permanentes. São interessantes para se perceber as múltiplas narrativas construídas sobre a fatalidade que os judeus chamam de shoah (que significa "calamidade"). Assim, franceses lembram da rendição perante os nazistas, enquanto os holandeses e os belgas lembram o horror da comunidade judaica (aliás, foi em Auschwitz que a jovem Anne Frank foi condenada à morte). Outros povos como os tchecos e os eslovacos lembram de Treblinka, o campo mais próximo de sua região (no qual foram mortas cerca de 900.000 pessoas), enquanto húngaros relembram a morte de milhares de judeus e ciganos que saíram de suas terras e nunca mais voltaram. Algumas narrativas são heroicas, como a dos poloneses - que reivindicam sua identidade nacional acima de tudo, criticando tanto a ocupação nazista como a ocupação soviética - e também a narrativa russa, que rememora a luta soviética e a libertação de Auschwitz pelo Exército Vermelho. Há também um espaço para os roma, os ciganos, que não possuem um Estado nacional e que só em 2011 tiveram o reconhecimento pelo governo polonês de que eles foram atingidos pelo holocausto nazista (o número, contudo, varia nas estatísticas oficiais para cerca de 220.000 ciganos, ou 25% da população romani da época). Essa é uma narrativa bem mais difícil e que apesar de catastrófica, é muitas vezes esquecida pela visão hegemônica do holocausto como um fenômeno da história judaica. Ou simplesmente pelo fato de que os Estados nacionais europeus até hoje hostilizam e marginalizam as comunidades romani.



A visita a Auschwitz I termina no Crematorium I, o único crematório que restou de pé em todo o complexo. Transformado em abrigo anti-aéreo, ele ainda guarda a sala da câmara de gás e os fornos do crematório. Nessa sala eu nem tenho muito a dizer para vocês...foi como se todas as vozes do mundo, entre vivos e mortos, gritassem de forma ensurdecedora na minha mente. As paredes não tinham nenhuma marca senão a do tempo. Os fornos estavam velhos e carcomidos pelo passar dos anos. Mas havia uma espécie de aura que não me deixava descansar. Ali eu senti medo. Se em outras partes me senti chocado, indignado e triste, ali tudo que restou foi o medo, foi o abandono.


Acho que hoje é difícil de escrever mais...ainda teria o que falar sobre Auschwitz II, o campo Auschwitz-Birkenau que era usado como campo de extermínio. Mas por ora é preciso pensar mais, é preciso deglutir mais...é preciso não ter medo.

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