sábado, 22 de novembro de 2014

Perambulando na (porta da) periferia

A gente falou, já em textos anteriores, que Paris é realmente uma ilha. São 2 milhões de habitantes para 9 milhões que ficam na periferia ao redor da cidade. Isso porque desde o final do século XIX a cidade atingiu seu tamanho atual e não se expandiu para além das "portas" que estão praticamente em cada uma das pontas da cidade. Mas isso não significa que tudo perto das portas é periférico: o nosso bairro, por exemplo, fica numa zona de classe média (e que alguns dizem é bastante "BoBo" - ou burguês-boêmio), mas é pertinho da "porte de Versailles". Outras "portas", contudo, são ocupadas por grupos sociais bem mais diversos. E hoje acabamos indo perambular numa das mais famosas portas de Paris: a "Porte de Clignancourt".



Essa é uma zona conhecida por parisienses e estrangeiros por abrigar, todos os sábados, um enorme "mercado de pulgas", com uma pá de antiguidades sendo vendidas para os colecionadores. Fomos lá com um casal de amigos e saímos um pouco decepcionados - os objetos eram bonitos, mas muito mal expostos e logicamente caros. Contudo, não se costuma falar é que, ao redor dos antiquários, vocês podem encontrar diversos ambulantes vendendo roupas, malas, acessórios, bijuterias e toda espécie de quinquilharia possível. Bem-vindos ao principal camelódromo de Paris!

A nossa missão era relativamente simples: comprar uma mala pequena para que pudéssemos usar para viajar e para voltar para o Brasil. Contudo, o preço é que não era fácil de obter - eu (que segundo a Juliane sou o mão fechada do casal) fazia questão de pagar menos de 15 euros pela mala.

Saímos de uma atividade na Sorbonne, que possui um campus bacana bem pertinho dali, e chegamos na estação de Clignancourt. Era hora de encarar o camelódromo parisiense! Cheios de coragem no peito e uma fome monstra no estômago, fomos para os mercados de ambulantes. Antes do viaduto que separa a "porte", os preços eram realmente mais caros. As malas estavam acima dos 20 euros (a mais barata!), então não dava para pegar. Nas lojas ao nosso redor, casacos caríssimos, botas por preços elevados. Será que estávamos no lugar certo? Até a C&A tava com preços mais baratos!

O jeito foi atravessar o viaduto ("Boulevard Ney") - embora a gente passe por baixo dele. Ali encontram-se também uma série de vendedores ambulantes, mas é um cadinho mais complicado. Os vendedores ali não são regulares, ou seja, eles são daqueles que vendem um "Iphone 6" legítimo (ou assim eles dizem), assim como Rolex e alguns tênis caros. É total cilada, claro, mas os vendedores são mais ostensivos. O negócio é manter a calma e dizer "non, merci" - praticamente um mantra para qualquer estrangeiro em Paris.
Foto do Tripadvisor
Do outro lado da Boulevard Ney, fomos andar pelo meio das lojas. Aqui é preciso ficar atento no clima completamente "anti-parisiense" que se encontra. Os vendedores tocam os clientes, te interpelam, fazem gracinhas... Mais maluco ainda é que os preços das mercadorias não estão expostos. Então você chega, pergunta quanto tá a mala e o sujeito olha para tua cara, para as tuas roupas e aí define o preço: 30 euros! E eu nem estava tão arrumado assim!

Comentei com a Juliane depois que sim, o preço era mais caro, mas ali era uma zona de negociação. Claro que você não vai pechinchar assim na maior, ainda mais sem conhecer os códigos locais, mas é bom saber que o preço que o vendedor define não é definitivo. Ao andarmos por esse lado da Boulevard, começou a bater um certo desespero. Nada de malas baratas, o cheiro forte de "kebab" por todo o lugar, várias línguas que não conhecíamos (e olha que ainda apanhamos com o francês às vezes). E como estávamos com fome, ainda começou a bater aquele mal humor vindo lá da boca do estômago. Era hora de parar pra comer.

Mas e a mala? Pois segue o baile, vamos entrar naquela rua.

Seguindo a "porte de Clignancourt", mais lojas. Agora um pouco menos muvucadas, mas que formavam um estreito corredor onde você não tinha por onde ir. Ou seguia em frente, ou dava meia-volta. Mas quem caça pechincha tem que fazer dessas coisas. E em duas lojinhas, sucesso parcial - malas por 15 euros! Na lógica de que o mercado é flexível em Clignancourt, ambas as malas aparentemente custavam 20 e poucos euros, mas o preço anterior estava riscado e estavam marcadas com 15. Ainda tava caro na minha opinião, mas quem sabe batendo perna encontrávamos algo melhor.





E encontramos... um lugar para almoçar. Ok, é menos glorioso, mas deu para comprar um xis frango, batatas e bebida por 5 euros num restaurante na "porte". O preço honesto fez com que eu me atrevesse a tomar a Orangina, um refrigerante de laranja tipicamente francês. Eu admito para vocês que detesto refrigerante, mas já que eu tava no meio de uma experiência antropológico eu pensei: "por que não, né?" Só que a Orangina é um horror. É uma Fanta amarelada e mais doce ainda. Para quem não bebe refrigerante, a Orangina não pode ser considerada decepção. É só uma meleca amarelada mesmo.

Empanturrados com as deliciosas fritas francesas (elas realmente eram muito boas...aliás, na Europa todas as fritas costumam ser boas), voltamos para o desafio da mala de menos de 15 euros. Mas a parte triste é que não encontramos ali em Clignancourt. Mas não me dei por vencido - voltamos na barraquinha de uma senhora que tinha a mala de 15 euros e fiz uma boa e velha pechincha. Foi estranho que para isso, ela chamou o marido e em um breve momento achei que era para me intimidar - mas pelo visto é porque o francês dele é melhor (ou pior...vai saber). Resultado? Mala por 13 euros comprada!

Esse relato, claro, é bobinho que só...porque o que eu não falei aqui é que as "portas" parisienses são as portas de acesso a periferia de 9 milhões de habitantes. E que com isso, há uma tensão social e étnica forte demais! Muitos argelinos, senegaleses, marfinenses, ou seja, boa parte da comunidade franco-africana estava lá. Encontramos lojas islâmicas, claro, mas ali a cultura periférica indicava outra inserção: menos focada na religião, mais focada na tensão social vivida e experimentada. Camisetas do Che Guevara, camisetas em defesa da Palestina, bandeiras da Argélia... Havia um certo orgulho de uma identidade terceiromundista que assombra qualquer um que pense em Paris como a cidade do amor, ou a cidade luz. Ali é uma pequena amostra de uma Paris bem mais real, bem mais caótica e bem mais tensa.

Voltamos para a casa, no nosso bairro BoBo e ficamos aqui pensando nisso: o que significa ser periférico em Paris? No Brasil, mesmo na nossa vidinha classe média, a gente tem alguma ideia do que é isso - afinal, em terra brasilis, a periferia tá em todo lugar e prestes a explodir. Mas em Paris a tensão é de outra ordem: essas pessoas realmente estão fora do escopo urbano, isoladas por boulevards e muros que os separam da cidade do amor, da cidade luz. Eles são o terceiro mundo de um primeiro mundo que tá logo ali, a poucos quilômetros de distância.

No final das contas, era só para comprar uma mala baratex. Mas acabou virando um passeio pelo lado de Paris que nenhum manual turístico vai trazer.

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