quinta-feira, 20 de novembro de 2014

O Oriente é aqui

Quando viemos para Paris, sabíamos que essa seria a experiência mais cosmopolita de nossas vidas. Tanto eu quanto a Juliane nunca havíamos morado numa cidade maior que Porto Alegre e, apesar de ter conhecido outras capitais no Brasil e no mundo, nada é tão impactante em Paris quanto essa sensação de estar no coração do mundo mesmo. E a cidade não é tão grande quanto se imagina - ela tem cerca de 2 milhões e 200 mil habitantes (embora se formos contar a periferia parisiense, esse número salta para 9 milhões de almas). Mas o que tem me chamado atenção nos últimos dias é a constante presença de culturas ditas "orientais" presentes na capital francesa.

Nas nossas primeiras semanas, reparamos que estávamos cercados por cerca de 3 restaurantes japoneses, 3 tratorias chinesas e um kebab de rua libanês - isso tudo numa mesma quadra. Andando ao redor do bairro, perto da nossa estação de metrô, é possível encontrar restaurantes indianos, tailandeses, vietnamitas, cambojanos, coreanos, árabes, sírios, iranianos, marroquinos, argelinos, tunísios, cingaleses...e isso num raio muito pequeno do nosso querido 15éme (um bairro de classe média, com presença tímida de imigrantes). A presença do "Oriente" também pode ser vista nos supermercados, que oferecem produtos de consumo japonês, chinês, indiano e tailandês a preços muito mais baratos do que encontraríamos em Porto Alegre - ou em qualquer parte do Brasil, a bem da verdade. E além da comida, também há toda uma série de casas de massagens tailandesas e chinesas - que para ser bem sincero, não tenho certeza se é só massagem que é oferecido lá.

Além de comidas e massagens, tem também os museus. Já falamos do Quai Branly e do Museu Guimet (aqui e aqui), que são museus construídos a partir da pilhagem exposição de objetos do Extremo Oriente (o Quai Branly tem coleções da África, da Oceania e da América também). Nesses museus, você tem todo um gostinho de oriente, com cabeças gigantes de Buda talhadas em rocha, elefantes de bronze das primeiras dinastias chinesas, espadas e armaduras samurais.


Museu Guimet
É uma forma de entrar em contato com essa cultura do Extremo Oriente sem nunca ter pisado lá. E isso que também dá para falar das exposições com gravuras japonesas e dança tradicional chinesa, que ocorrem em locais como o Palais du Congrés. Admito que algumas eu morro de vontade de ver, mas a Juliane não é tão ligada assim quanto eu nessa cultura oriental (de consumo ocidental).

E, é claro, deve se falar da presença de imigrantes. Alguns deles já estão estabelecidos a duas ou três gerações em Paris, então é até estranho falar nesse sentido. Mas quanto mais perto das "portas" de Paris, mais próximos estamos de zonas de imigrantes, que reivindicam sua identidade nacional além dos limites da francesa (até porque, nem todos os franceses parecem querer aceitar os imigrantes dentro de sua pátria). Mas a imigração não é só "árabe", não. Ela é forte, claro, mas há uma multiplicidade de imigrantes de países asiáticos (e também africanos, claro) que cria grupos étnicos diferentes no mesmo espaço. No 20éme você pode encontrar toda uma zona de imigração indiana e paquistanesa, enquanto no 13éme existe o quartier chinois. Entretanto, é bom avisar: no Brasil a gente não tem nenhuma formação urbana assim. Os espaços dos imigrantes parecem bastante demarcados e lembram um pouco a ideia de "gueto" mesmo. No Brasil, essa guetificação varia de cidade para cidade, mas há espaços de convivência comuns na maioria das capitais. Não sei se é bem o caso de Paris.

Em parte a gente acaba se sentindo realmente no centro do mundo aqui, como se todas as culturas viessem para Paris. Mas aí a gente tem que abrir o Edward Said, dar uma lida e respirar fundo. O "Oriente" para consumo e o "Oriente" das tensões sociais são, de uma certa forma, o mesmo "Oriente": um discurso que parece mais afirmar o que se quer chamar de "Ocidente" a partir do outro (ou melhor dizendo, da negação do outro). A ideia de colocar diferentes culturas e salientar-lhes seu "exotismo" - ou o seu "perigo" - parece uma forma de lembrar que o francês não é e não faz parte desse cenário cultural. Em alguns casos, como se trata só de consumir a mercadoria "Oriente", parece bastante inofensivo. Mas quando entram os estereótipos e as batidas policiais, parece que a lógica do "Oriente" como inimigo segue forte.


Um dos casos mais famosos aqui na França foi a polêmica com o hijab, o véu feminino islâmico. Desde o final dos anos 1980 isso gerava tensões na comunidade escolar francesa, que sempre prezou pela laicidade das instituições de ensino. Aqui não rola crucifixo em nenhum prédio público, não. Pois nos anos 1980 e 1990 vários legisladores e burocratas passaram a combater o uso do hijab em espaços públicos e isso estourou justamente nas escolas públicas francesas. Hoje em dia o véu pode ser usado, desde que não tape os olhos. Mas ainda há processos na justiça francesa de centenas de alunas que foram expulsas das escolas por se negarem a tirar o véu durante as aulas.

É no mínimo curioso que o Oriente esteja tão presente em Paris. A gente sabe, claro, que é um Oriente que agrada os franceses: ou exótico e pronto para consumo, ou tensionado que mascara a dominação e a exploração social. Mas ele tá ali. Nos outdoors dos metrôs, nas mulheres de véu, nos restaurantes com cheiro de peixe, ou até nas casas de massagens...

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