domingo, 2 de novembro de 2014

Nossa primeira manif em Paris – Kobane, resistance!

Desde que chegamos aqui, tentei descobrir o que rolava em termos políticos. Temos assistido os telejornais franceses que, via de regra, costumam apresentar debates de diferentes posições sobre os fatos. No Brasil, o único jornal que faz isso é a TV Cultura, que eu saiba. Andávamos procurando uma manif para ir, mas nada fazia ainda muito sentido: é difícil se situar politicamente numa terra que não é nossa.

Adesivo do Crescente Vermelho do Curdistão: doamos 1 euro pra eles...

Foi partindo desse princípio que a gente encontrou uma manif ideal para ir. No último dia 1º de novembro teve um ato em solidariedade aos curdos que lutam na região de Kobane, na Síria. Para quem tá por fora, essa região foi uma das terras que os grupos radicais islâmicos anti-Assad tomaram lá na Síria. E o único grupo que tem feito a resistência na região é a guerrilha curda, ligada principalmente ao YPJ (um braço armado do PKK, que é o Partido Comunista do Curdistão).

Pessoas enroladas na bandeira do Curdistão
O Curdistão, diga-se de passagem, não é um Estado nacional. Apesar dos curdos reclamarem sua soberania nacional desde o início do século XX, eles foram engolidos por iraquianos, sírios, iranianos e turcos e lutam em busca de sua autodeterminação. É um dos grupos nacionais que a mais tempo luta pelo seu direito de construir um Estado-Nação. Porém, Turquia, Iraque, Irã e Síria tiveram governos que reprimiram duramente os curdos e a sua luta nacional. Assim, o que tem ocorrido em Kobane é basicamente o enfrentamento entre grupos fundamentalistas contra os curdos. Contra? Pois é, os curdos são bastante laicos na sua relação com o Estado e, principalmente, com as mulheres. Eles inclusive têm uma guerrilha feminina, a YPG, que tem enfrentado os militantes do Estado Islâmico à bala.

Adesivo distribuído pela Federação Anarquista
Bandeira do Curdistão estendida - vermelho, branco, verde e com um sol amarelo no meio


Então, a gente chegou lá para ver como é uma manif francesa, mas o que vimos foi um ato de solidariedade entre os povos bastante comovente. Da praça da Bastilha até a praça da República, o pessoal marchou aos gritos de “Kobane, resistance”. Mas o mais intrigante era a composição da passeata: enquanto os grupos da esquerda se faziam presente (PCF, OCML VP, Front de Gauche, NPA, Anarquistas, Feministas...), os curdos vinham para a manif com famílias inteiras. Senhoras idosas, jovens estilosas, senhores de meia-idade, crianças, mães, gurizada da zueira...tava todo mundo lá. E não é à toa: na França, segundo a Wikipedia, tem cerca de 135.000 curdos vivendo imigrados.

Pai e filha na manif

Menino curdo em cima da coluna da República
Os grupos de esquerda seguiam a lógica que vemos no Brasil também: cada trupe com suas bandeiras. O pessoal não se mistura e eventualmente disputa espaço no meio da passeata para mostrar suas bandeiras e aparecer na televisão ou nos jornais. Todos eles distribuíam jornaizinhos e panfletos, os quais tentamos pegar o máximo possível – inclusive com alguns adesivos. Um dos mais a fudê era o de uma organização feminista que defendia a luta das mulheres curdas contra o patriarcado. Outras organizações denunciavam o fascismo do regime turco. Outras queriam a formação de um Estado curdo valorizando três aspectos da luta do PKK, criticando o fundamentalismo religioso, o nacionalismo e o apoio do Ocidente (que a gente sabe que sempre cobra um preço...).

Família de manifestantes - o lenço é tradicional das cores do Curdistão

Alguns dos panfletos que recolhemos no meio da manif

Panfleto de grupo feminista em apoio a luta dos curdos
Já os curdos carregavam cartazinhos falando basicamente “sauvons Kobanê” - chegamos a ganhar alguns desses, para apoiar a galera. Eles se vestiam com suas cores nacionais (vermelho, verde, amarelo e branco) e desfraldavam bandeiras dos partidos e grupos guerrilheiros envolvidos. O detalhe mais bizarro foi uma bandeira que vimos em enorme quantidade que era toda amarela e tinha um distinto senhor de bigode nela, que mais parecia uma visão dos “grandes líderes comunistas dos anos 50”. Na verdade, é tipo isso: esse homem é Abdullah Öcalan, secretário geral do PKK e um dos criadores do partido. O problema é que desde 1999 ele se encontra preso, graças a uma operação conjunta da CIA e do serviço secreto curdo. Parece até narrativa da época da Guerra Fria, mas causa mesmo um estranhamento dessa figura do “mártir” no meio das bandeiras e faixas dos curdos.

A Ju, musa da manif, carregando um cartazinho

Bandeira com o rosto de Abdullah Ôcalan
As crianças faziam um show a parte. Os pequenininhos carregavam apitos com uma cordinha verde, vermelho e amarela, muitas vezes com tiaras e lenços da mesma cor. Tentamos fotografar vários para registrar o momento, porque convenhamos: no Brasil, com a nossa polícia, levar criança para passeata pode se tornar bastante perigoso.

Olhos atentos em meio a manif

Crianças subindo no poste e fazendo sinal da vitória

Menino escalando a coluna da praça da República
Falando em polícia – e citando Carlos Marighella – “polícia é polícia em tudo quanto é lugar”. Na França, a gendarmerie não é lá muito diferente. Mas eles andam bastante queimados por aqui. Recentemente eles estão sendo acusados pela morte de um jovem ecologista chamado Remi Fraisse, do movimento contra as barragens. Aparentemente eles usaram bombas de gás lacrimogêneo e o rapaz inalou em excesso “cloreto de potássio” (ou algo do gênero). Várias organizações estão denunciando a ação da polícia que fora extremamente brutal – nem a mídia conseguiu aliviar na dos caras, embora hoje a gente tenha visto um jornal dizendo que “ele não era um extremista” (se ele fosse, não tinha problema matar?). Por conta disso, a região de Nantes tem visto várias manifestações em protesto contra a polícia, o que ajuda a explicar o porque os gendarmes estarem armados como se fosse para uma guerra. Contudo, para uma manif cheio de velhos e crianças, os gendarme estavam com armamento ostensivo, máscaras de gás...nós, que falamos que nunca vimos muitos policiais em Paris, vimos que eles estavam em peso nos vigiando na manif. De fato, depois que houve a dispersão, vimos cerca de 8 furgões lotados de policiais armados.

Manifestantes lembrando os guerrilheiros curdos
Aliás, a dispersão do protesto foi também muito interessante. Já sabíamos que os franceses de esquerda têm o hábito de subir nas colunas ou da praça da República, ou da praça da Bastilha, para comemorar suas vitórias. Mas quando os jovens curdos passaram a subir, empunhando bandeiras comunistas, isso foi bastante inusitado. Ao mesmo tempo, a comunidade curda organizou também um showmíciozinho com músicas típicas e apresentações de dança. Tinha também banquinhas com livretos sobre a luta dos curdos. E, o mais importante: também tinha comilança! Havia várias barraquinhas com algo que para nós, gaúchos, chamaríamos de entrevero (aquele chapão com carne, cebola, linguiça e pimentão, tudo picado e misturado). Os curdos colocam isso no pão, largam um molho super condimentado, e saem comendo bem tranquilos. Alguns preferiam colocar vegetais crus, como tomate, cebola e pepino, junto com linguiças assadas nas brasas de uma espécie de churrasquinho na grelha. Eu não cheguei a provar, mas tive que registrar o momento.

Isso tudo frito no azeite...detalhe para os pimentões

O primeiro churrasco que vimos em Paris
É difícil não se deixar levar pelo lado romântico da coisa. Era uma manifestação com milhares de pessoas e em solidariedade a um dos povos mais atacados na história recente. Vozes de solidariedade aos palestinos e os armênios também vieram dos microfones e altofalantes, uma bandeira de Cuba tremulando com várias pequenas bandeiras com Che Guevara...era um cenário de solidariedade política como não víamos no Brasil desde os idos tempos do Fórum Social Mundial. Saímos de alma lavada, com adesivos, sorrisos e uma curiosidade enorme sobre a luta dos curdos, sobre a resistência em Kobane e a revolução em curso na Rojava, sobre as disputas entre partidos e guerrilheiros...

Bandeira do grupo marxista-leninista curdo

Palco com parte do público levantando bandeiras com a imagem de Che Guevara
A gente só espera que o leitor também tenha ficado curioso em conhecer um pouco mais sobre a luta do povo curdo. E que essa manif tenha sido só a primeira de muitas.

Kobane resistance :)

PS: Para mais fotos, vejam as fotos do perfil da Juliane no Google+. :)

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