terça-feira, 18 de novembro de 2014

A visita a Birkenau

A Juliane tentou dar uma quebrada na narrativa sobre nossa visita a Auschwitz ontem e ainda bem que ela fez isso. Mas no final das contas, restou ainda falar de Birkenau, ou Auschwitz II, o campo responsável pelo extermínio sistemático de judeus e roma durante a Segunda Guerra Mundial.

Fomos para lá no início da tarde, num dia frio e cinzento. Essas experiências estéticas são curiosas...era uma tarde fria de novembro e o dia estava absolutamente cinza. As folhas das árvores davam um toque todo outonal e melancólico na paisagem, dando a impressão de que aquele lugar sempre fora assim. Em quase todos os filmes sobre o assunto, a paisagem de Auschwitz é simplesmente cinza. Eventualmente com neve, mas nem sempre. É difícil imaginar que num campo de concentração e extermínio pudesse haver sol, ter o desabrochar das flores, os pássaros cantando... é como se fosse preciso que a paisagem natural estivesse ligada diretamente a tragédia humana.


A entrada em Birkenau ainda guarda todos os trilhos do trem que levava as pessoas para o campo. Como falei no texto anterior, os vagões de trem eram lotados muito além de suas capacidades. Lá dentro, não havia paradas para alimentar as pessoas. E para beber, somente o degelo da neve permitia que eles ingerissem algum líquido. Qualquer excreção que seja era feita em meio a centenas de pessoas. E era nessas condições que os trens chegavam a Auschwitz. A média calculada pelos historiadores registrada no museu é que entre 66% a 75% das pessoas que chegavam nessas condições eram enviadas diretamente para as câmaras de gás - dado o fato que não tinham condições de trabalhar. Era ali, em Birkenau, que as famílias eram separadas de fato. Auschwitz I era mais um campo de prisioneiros, construído originalmente com esse propósito em 1940. Birkenau, construído em 1941, era um campo cujo propósito central era o extermínio.


A ideia de construir o campo era aproveitar o espaço que sobrava para desobstruir Auschwitz I. Assim, Birkenau foi construída a partir de uma série de estábulos de madeira, onde os nazistas instalaram beliches improvisados também com madeira. Em cada um desses beliches havia 3 andares, sendo que o andar de baixo era o chão de terra batida. Em cada andar ficavam cerca de 8 pessoas, totalizando aproximadamente 24 indivíduos num beliche. Apesar das condições de desnutrição crônica, era comum as camas de madeira cederem e desabarem sobre aqueles que ficavam nos andares de baixo. Assim, lesões e morte eram comuns até mesmo durante as poucas horas de descanso dos prisioneiros.


Posteriormente os nazistas construíram barracões de tijolos, especialmente dado o frio incessante da região. O sistema de acomodação dos prisioneiros, contudo, não melhorou. Havia dois fornos a lenha dentro dos barracos, mas eram comuns os casos onde a lenha úmida soltava mais fumaça do que produzia calor, o que acabava prejudicando especialmente as crianças e os prisioneiros mais debilitados. Nos barracões de madeira ainda era possível ver o sistema de latrinas construído pelos nazistas que, a bem da verdade, não era um sistema. Era somente uma placa de pedra sobre um banco e com diversos buracos redondos para as pessoas fazerem suas necessidades. O problema é que não havia escoamento e, consequentemente, os excrementos ficavam todos ali. Entrando num desses barracos ainda hoje é possível sentir cheiros desagradáveis, provavelmente dos ácidos expelidos pelas fezes e urina.


Nos barracões, como afirmei anteriormente, homens e mulheres eram separados. Os homens geralmente eram conduzidos para trabalhar nas fábricas próximas, sendo a mais favorecida a IG Farben, uma empresa química alemã que atuou até a década de 1950 e teve todos seus executivos responsabilizados e condenados no Tribunal de Nuremberg. Já as mulheres tiveram pior sorte - em 1942 foi feita a transferência das mulheres de Auschwitz I para Birkenau e nesse processo, 8 mil mulheres foram enviadas às câmaras de gás do campo. O que percebemos também é que os efeitos devastadores na forma física e na saúde eram mais devastadores nas mulheres: elas faziam parte do que muitos chamavam em Auschwitz de "muçulmanos" - pessoas que estavam esquálidas e exaustas, sem condições de sobreviver. Além disso, havia toda uma preocupação dos cientistas alemães em esterilizar as mulheres prisioneiras - inclusive inventando métodos extremamente violentos para isso.


Birkenau ampliou (e muito) a capacidade de destruição humana de Auschwitz. Lá foram criadas mais quatro câmaras de gás e seus respectivos crematórios. Hoje restam apenas as ruínas deles, destruídas pelos nazistas com dinamite. Em todas essas ruínas é possível observar as celas subterrâneas por onde passavam os prisioneiros antes de irem para as câmaras. Porém, a destruição é tal que chega a ser esquisito se deparar com os escombros daquilo. Desde a chegada do Exército Vermelho, os escombros não foram removidos. Na verdade, eles serviram como evidência no Tribunal de Nuremberg, onde o líder nazista Rudolf Höss foi julgado e condenado. Aliás, a condenação de Höss ocorre justamente em Auschwitz I, num púlpito de frente a única câmara de gás que não fora destruída. Ali ele foi enforcado diante da presença de autoridades polonesas. Quando perguntado se ele era responsável pela morte de 3 milhões de pessoas, Höss respondeu que não, somente de 2 milhões, já que o resto teria morrido de fome e doenças. O púlpito onde ele foi enforcado ainda se encontra em Auschwitz I.


Ainda sobre Birkenau, é lá que foi feito um memorial no final da década de 1950 para lembrar os horrores. A estrutura do memorial é em uma espécie de escadaria, que garante a vista panorâmica do campo. Lá há uma escultura com a seguinte inscrição: "Que este local sirva como lamento desesperador e aviso a humanidade, onde os nazistas assassinaram um milhão e meio de homens, mulheres e crianças, principalmente judeus, de toda a Europa". Ela é escrita em diversas línguas e a parte central é escrita em polonês - apesar da maior comunidade judaica atingida ter sido a húngara. Contudo, a escultura nos deixou um tanto quanto confusos quanto aos nossos sentimentos. Sabe-se que quase 90% da população morta era, de fato, judia. Mas a monumentalização das placas tende a colocar em evidência somente o grupo mais atingido. E embora esse seja um tema espinhoso, há um outro porém a ser citado: é em Birkenau que os nazistas construíram o único campo destinado aos prisioneiros sinti e roma, ou seja, ciganos.


O porajmos é o nome que os ciganos dão ao holocausto. As suas cifras são menores do que o que ocorrera com a comunidade judaica, mas não menos impactantes. Apesar das dificuldades em quantificar, cerca de 220.000 pessoas sinti e roma morreram nas mãos dos nazistas (aproximadamente 40.000 somente em Auschwitz) e isso seria mais ou menos 1/5 da comunidade cigana mundial (entre os judeus, o número chega a cerca de 1/3 da população mundial). O zigeunerfamilienlager (ou "campo familiar cigano", segundo traduções na internet) era isolado dos demais grupos e os ciganos receberam triângulos marrons para identificá-los. Ele ficava num dos extremos em Birkenau, sem qualquer identificação atual. Possivelmente porque ele foi fechado em 1944, após Himmler ter dado a ordem de executar os últimos 2.000 sinti e roma que ainda estavam ali.


É natural que o holocausto torne-se uma narrativa de destruição pessoal para os que mais foram atingidos por ele - e que com isso se constituam identidades nacionais fortalecidas pela sobrevivência. Sabemos disso e compreendemos bem esse processo. Mas a sensação que tivemos é de que Auschwitz (e os demais campos de concentração) foram uma derrota para a humanidade. Que independente de etnia, religiosidade ou gênero, a tragédia tem um componente universal que não podemos escapar. É como se fossemos ao mesmo tempo vítimas (porque solidários a todos que sofreram) e culpados (porque incapazes de garantir que isso nunca mais irá acontecer). É nesse precário equilíbrio que sobrevivemos após essa visita em Auschwitz...e eu queria poder ter uma mensagem um pouco mais animadora para quem leu e acompanhou esse nosso olhar sobre a destruição. Mas não tenho. Deixo, contudo, as palavras de uma das vítimas mais famosas de Auschwitz:

"Apesar de tudo, eu ainda acredito na bondade das pessoas." (Anne Frank)


Nenhum comentário:

Postar um comentário