Continuamos hoje a parte II do texto do Guinter sobre o procés catalão de autonomia. O texto é muito bom e a primeira parte foi ontem, para quem perdeu (é só clicar aqui , calma). Vale para entender até mesmo a nossa dificuldade, enquanto brasileiro do sul para compreender os separatismos sem cair em xenofobias e doidices afins. Um baita texto e que vale salientar: ele e as fotos são obras exclusivas do próprio Guinter: a gente só cedeu o espaço e, é claro, foi uma honra. :)
Começando por uma questão comum a
tod@s: a atitude do Estado espanhol em se mostrar totalmente avesso à consulta,
algo percebido como antidemocrático, em que pese as garantias de autonomia
previstas na sua constituição, tem acirrado em muito as posições. Isto é, acima
de tudo, querem poder simplesmente ter a possibilidade de decidir, mesmo que
para dizer não à independência. Isso por si só evidenciaria a fragilidade do
exercício democrático no Reino da Espanha.
Agora, para além disso, as coisas
começam a ficar mais complexas. O primeiro com quem conversei mais detidamente
foi um estudante de Educação Social da UdG
(Universitat de Girona), no meu
segundo dia em Girona. Estavam fazendo uma greve, mantendo por dois dias
fechado o campus Barri Vell (que
concentra os cursos de Humanas, como não poderia deixar de ser). Perguntei quem
de fato defendia a independência. Me disse que havia diferentes grupos
políticos, inclusive mais à direita, mas que mais seriamente a esquerda catalã
(em suas diferentes tendências). Para Mas e a CiU, segundo ele de
centro-direita, era apenas uma forma importante de garantir votos nas próximas
eleições (oportunismo eleitoral, a gente também vê por aqui...). Na esquerda,
os grupos rupturistas não compõem a
campanha pelo referendo, porque defendem que uma independência política não
necessariamente traz mudanças sociais. Já ele, outros grupos e partidos (como a
Ezquerra Republicana, que tem
deputados na Generalitat e que é o atual favorito segundo as pesquisas para a
próxima eleição de presidente do órgão), entendem ser importante discutir e
promover o referendo, mesmo que aliando-se momentaneamente com grupos de centro
e centro-direita, e ainda que ele também entenda a importância de aproximar às
questões políticas as pautas sociais (como o crescente problema de despejos de famílias pobres e de
classe média baixa, que perderam suas casas com a crise).
O segundo grupo com o qual conversei
eram alguns professores da UdG, incluindo minha orientadora aqui, a professora
Rosa Congost. Gentilmente me convidaram para um café, querendo saber mais sobre
as eleições brasileiras (especialmente sobre o fenômeno Marina Silva), mas
igualmente sobre como eu - apenas um rapaz latino-americano com alguns euros no
bolso – via toda esta questão política da Catalunha. Respondi que achava muito
interessante, mas que ainda estava aprendendo a respeito. Uma pergunta, no
entanto, me chamou a atenção: se na América Latina havia simpatia com a causa
catalã pelo fato de supostamente compartilharmos uma “experiência colonial” em
comum, quer dizer, como sofrendo também do imperialismo castelhano. Bom,
argumentei que, ao menos no Brasil, com exceção de pessoas mais interessadas
sobre o tema (ou do público da História), a população em geral desconhece as
diferenças internas da Espanha. Então, a Conquista
e a exploração coloniais estão associadas ao espanhol genérico, sem considerar
as diversas nações dentro da Espanha. Logo, brincaram sobre essa questão de que
aqui só existe a Catalunha e mais nada. E a respeito da independência em si,
tinham posições mais moderadas, não tendo certeza se seria um bom negócio,
embora seguramente que se identificassem como catalães e não como espanhóis.
Possivelmente por serem mais velhos, estejam mais desiludidos com toda a
questão...
A última conversa que destaco foi
com um dos meus companheiros de casa: trinta e poucos anos, engenheiro de
recursos renováveis, ativo na militância dentro da sua área, assinante de um
jornal produzido em Barcelona bancado por movimentos sociais. Ele me argumentou
que, basicamente, o Estado espanhol é um “desastre”, em diferentes sentidos.
Apesar de no papel - ou seja, na constituição – serem garantidos às comunidades
autônomas espanholas níveis de soberania relativa a diferentes elementos
(especialmente de língua, lembrando que não apenas o idioma falado na Catalunha
é distinto do castelhano, mas também o galego e o basco, este sim completamente
diferente), na prática o Estado espanhol ceifa uma série de direitos. Por
exemplo, afirma que deve-se “espanholizar” as crianças catalãs, pois a
aprendizagem do catalão prejudicaria seu domínio do castelhano (lembre-se de
que os catalães são educados em ambas as línguas). O argumento da Catalunha
como uma das últimas “colônias” de Castela também apareceu em sua fala. Por
outro lado, os indivíduos que têm ocupados os principais cargos políticos no
governo espanhol estão vinculados direta ou indiretamente ao período franquista,
sendo filhos ou netos de generais e de outros colaboradores da ditadura (algo
que tristemente nos soa familiar...).
Por último, ressaltou que o argumento
fiscal/econômico também importa. (Aliás, talvez o principal argumento abraçado
pelas forças mais conservadoras da Catalunha que estão na aliança política pelo
referendo). Atualmente, a Catalunha é responsável por cerca de 20% do PIB
espanhol, recebendo no entanto bem menos do que isso. Ok, aqui está uma pauta
que para nós mais se aproxima de uma visão mais reacionária do separatismo.
“Produzimos mais riquezas, mas recebemos muito menos”. O meu companheiro de
casa argumentou que isso tem um efeito a médio prazo de quebrar a economia
catalã. De fato, não ficou claro para mim, talvez lost in translation, qual sua opinião acerca disso, ou se este é um
argumento mais válido para a causa independentista. Contudo, disse que, no caso
de uma separação da Catalunha em relação à Espanha, a primeira com certeza
absorveria boa parte da dívida espanhola, o que seria benéfico a outras
regiões. Resumindo, a questão é complexa, é não se pode reduzir a causa
independentista a um único fator. Como qualquer questão histórica.
Bueno, é uma questão difícil de
se compreender para um novato como eu. Se posicionar com clareza, ainda mais. O
elemento econômico/fiscal, muito ressaltado pelas redes de notícias, ou ao
menos pela TVE, principal canal de
televisão, soa demasiado familiar, muito próximo ao argumento das elites
brasileiras, e especialmente gaúchas e paulistas, sobre como trabalham tanto e
são responsáveis pela riqueza produzida no país, mas que são aviltados pelos
“pobres” e “vagabundos” concessionários da Bolsa-Família nordestinos. Na
Espanha, geograficamente o Norte/Nordeste cultural e econômico seria o sul, a
Andaluzia. Por isso, a pulga permanece atrás da minha orelha.
Contudo, também me parece
verdadeiro, até o momento, que os principais defensores de uma
soberania/independência estão situados mais à esquerda. E também me parece
certo que a experiência do regime franquista, que proibia o uso do catalão em
espaços públicos, e mesmo em cartas particulares, contribuiu para o reforço de
uma identidade catalã como uma identidade política, acima de tudo. Franco, os
fascistas espanhóis e a Guerra Civil de 1936-1939 implicaram uma ruptura no
processo de mobilização social e política que vivia toda a Espanha naquele
momento com a República. O discurso da unidade da nação espanhola, alimentado
fortemente pela religião católica e o “espanholismo” (que na verdade era um “castelhanismo”
disfarçado) reprimiu violentamente não apenas quaisquer discursos e práticas de
contestação social, mas também - algo mui significativo para os espanhóis como
um todo - as diferentes expressões nacionais que compõem o país. (O Museu de
História de Girona tem uma seção muito legal só sobre a República e os seus
levantes, e a cidade como um todo tem alguns espaços de memória das vítimas do
franquismo). Desse modo, ao meu ver, apesar de fincar profundas raízes
históricas, que remontam ao início da Idade Moderna, não precisamos voltar até
a união das coroas dos reis católicos de Castela e Aragão no século XVI para
compreender a briga dos catalães contra o Estado espanhol; creio que a
experiência franquista dá muito o tom das expressões políticas que se têm hoje.
Sob este argumento, a causa soberanista/independentista catalã me parece muito
simpática, e com certeza, contaria com uma adesão imediata de minha parte.
O grande problema é como traduzir
identidades e experiências políticas de um país para outro. Acho que não
precisaríamos de uma pesquisa para saber que grande parte dos que hoje falam em
separação do Sul/Sudeste do Brasil em relação ao Norte/Nordeste – ou do Rio
Grande do Sul em relação ao resto do país - são os mesmos que relativizam a ditadura,
ou inclusive defendem abertamente a sua volta, os mesmos que ressuscitam o
argumento do “fantasma comunista” e por aí vai. Isto é, assumem claramente
posições de direita, conservadoras, reacionárias. (É claro que, a não ser no
período pós-independência e de formação do Estado brasileiro no século XIX,
processo fortemente centralista, não existiram movimentos separatistas
realmente sérios no país). Já aqui, o buraco é mais embaixo. E enquanto alguém
identificado como politicamente “de esquerda”, isso me inquieta. A princípio,
empresto minha simpatia à causa catalã, ainda que não tenha clareza sobre isso,
especialmente sobre qual deveria ser seu destino, um Estado dentro da Espanha,
ou separado do reino. Mas decidir sobre isso não cabe a mim, cabe aos catalães.
Continuarei buscando a aprender sobre, e refinar minha posição, acompanhando de
perto o procés...
PS: as informações e dados
históricos, especialmente sobre os grupos políticos da Generalitat, foram
extraídos de fontes de Internet e de minha absorção das informações de jornais
e televisão; é possível que tenha me equivocado sobre algumas caracterizações,
então sugiro consulta a outras fontes!