Desde que chegamos aqui, eu e a Juliane temos notado algo
curioso no dia a dia francês. Esse é, sem dúvida, um país de artesãos. Como
assim? Já comentamos isso em outros momentos, mas o mais comum aqui é encontrar
lugares que se orgulham de produzir o melhor presunto, o melhor baguete, o
melhor croissant e por aí vai. Mas o que não comentamos é que nesses lugares,
antes de afirmar que fazem a melhor gororoba, eles reivindicam o título de
artesãos. Ou seja, não se trata de um padeiro, mas sim de alguém disposto a
viver pela sua arte: a arte do baguete.
Agradecemos, é claro, pelo fato de que o pós-estruturalismo
das artes não chegou nos talentos dos padeiros franceses – sabe-se lá o que
poderia vir daí. Mas é estranho pensar que eles são capazes de se reivindicar
como artesãos ainda hoje.
Digo isso porque a história dos operários franceses, da
Revolução Industrial aqui, tem um toque um tanto quanto inusitado. Aqui havia
um amplo mercado de trabalho, lá pelo século XVIII, focado nos artesãos. O
artesão era aquele encarregado de um ofício específico (digamos, por exemplo,
preparar pão). Para isso ele contava com inúmeros ajudantes e lhes pagava com
comida, lugar para morar e vestir – não muito diferente da escravidão. Mas
havia algo mais: o artesão passava adiante o segredo de sua arte (fazer pão)
para os seus ajudantes, que na verdade nada mais eram do que aprendizes. Assim,
um passava para o outro o segredo do ofício. No capitalismo moderno, momento em que entra o trabalho assalariado na jogada, esse artesão especializado percorreu
dois caminhos: ou se especializou tanto que passou a gerenciar outros
trabalhadores, ou simplesmente seu trabalho ficou obsoleto e ele passou a ser
um peão na linha de produção.
Contudo, alguns ofícios na França mantém ainda a ideia de
chamar o trabalhador assalariado de “artesão”. Provavelmente isso lhes garante
prestígio e um inusitado exemplo disso é que aqui perto da nossa rua tem a
Associação dos Artesãos do Táxi. A gente chamaria isso de Sindicato dos
Taxistas, mas tem uma coisa maluca aqui: afirmar que o seu trabalho artesanal é
muuuuuito superior ao trabalho feito por “qualquer um”. É por isso que os doces
nas pâtisseries são lindíssimos, é
por isso que os baguetes ganham prêmios e os supermercados têm sommeliers para
nos ajudar a escolher o vinho nosso de cada dia.
A valorização do artesão aqui chega às raias do surreal
quando a gente adentra nos preços. Uma ida na loja de congelados mais próximos
e encontramos, por exemplo, um filé de porco congelado por 17 euros o quilo
(sim, um assalto). Se formos do outro lado da rua, no supermercado, eles
oferecem esse mesmo filé já cozido num molho pronto por...17 euros o quilo.
Comprar uma pizza congelada? Cerca de 3 euros. Comprar os ingredientes para
fazer a pizza em casa? Quase 9 euros. A mesma coisa notamos com carnes também.
Comprar a carne congelada sai mais barato que comprar carne fresca – o que não
é exatamente uma surpresa. Mas comprar o prato de carne congelado sai mais
barato que comprar a carne para cozinhar em casa. Nas feiras de produtos, por
exemplo, ao contrário do Brasil, eles são bem mais caros que nos supermercados.
Em todos os lugares, a mesma lógica: o trabalho manual (do artesão) tem mais
valor que o trabalho industrializado (o que se reflete no seu preço). Assim, a
ideia de economizar aqui cozinhando em casa nem sempre se verifica dependendo
do prato que você faz.
Comentei com a Juliane que acho que isso tem um pouco a ver
com estarmos numa sociedade já bastante industrializada, onde esse processo de
industrialização de alimentos tá anos luz à frente do Brasil. Aqui se encontram
alimentos processados de todas as formas, tipos, tamanhos e origens (escargot
congelado por 3,95 na loja de congelados mais próxima). No mês passado chegamos
a comprar sachês de purê de batata prontos. Os chocolates industrializados são
ótimos e baratos... Porém, quando se chega na parte do trabalho manual e
delicado, se reivindica o valor do artesão e de seus segredos. Como na época
das corporações de ofício, essa figura dedica-se integralmente a fazer do
trabalho dela uma obra de arte. E para consumir essa arte, o preço pode ser (e
na maioria das vezes é) maior. No supermercado, a baguete pronta custa 0,40
centavos. Na boulangerie artesanal,
0,95 centavos.
No último sábado fomos num festival que ocorreu no parque
André Citroën, a algumas quadras daqui de casa. Lá vimos que um dos grupos
organizadores era uma associação de artesãos internacional que combatia a
presença da agro-industria e dos intermediários nos processos de produção. Era
bem interessante e eles até tinham uns sucos brasileiros (cheios de goiaba, mas
ok). Mas novamente a ideia do artesão falava mais forte: eles não são
trabalhadores. Eles fazem arte. E querem ter isso reconhecido na França e no
mundo. Esse tipo de distinção deve dar uma minada na solidariedade de classes
deles...
Assim, a gente vai vendo, pouco a pouco, que as noções francesas
sobre o trabalho são bastante diferentes das nossas. Entre artesãos/artistas e
operários, estamos numa sociedade bem mais industrializada e que nos oferece,
no frigir dos ovos, um passeio por uma sociedade de consumo diferente da nossa.
Que valoriza o trabalho manual em detrimento do trabalho industrial. E que
reconhece nisso uma tradição de tempos mais antigos do que o nosso.
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